‘O Brasil está de volta’: será que as PDPs também?

March 13, 2023

This content is avaiable on

JOTA

“O Brasil está de volta.” Esta foi a frase utilizada pelo secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde (Sectics), Carlos Gadelha, no último dia 30 de janeiro, em discurso no Conselho Executivo da Organização Mundial de Saúde (OMS). A declaração resume a postura que o governo Lula pretende adotar nos próximos quatro anos e que, aplicada ao sistema produtivo nacional do setor – o Complexo Econômico-Industrial da Saúde –, pode se traduzir na retomada dos programas de nacionalização da produção e de transferência de tecnologia para laboratórios públicos.

Segundo Gadelha, o Brasil está “totalmente comprometido com a produção local” de insumos estratégicos para a saúde, o que parece indicar que o futuro está próximo de repetir o passado, com a retomada dos investimentos em programas como o das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs).

Afinal, de acordo com o próprio Ministério da Saúde, as PDPs são parcerias firmadas entre laboratórios públicos e privados, com o principal objetivo de fomentar, por meio de acordos de transferência de tecnologia, o desenvolvimento nacional da indústria do setor. Com isso, busca-se reduzir os custos de medicamentos, produtos e vacinas para o SUS, assim como diminuir a dependência externa, especialmente na área de princípios ativos[1]. Isso acontece por meio do arranjo envolvendo empresa privada – que detém a tecnologia –, laboratório público – que absorve a tecnologia – e Ministério da Saúde – que financia a PDP, comprando, com total ou parcial exclusividade, o produto objeto da transferência de tecnologia. O esquema abaixo ilustra o funcionamento das PDPs:

Nos governos do PT, as PDPs foram um dos principais instrumentos de fomento à indústria nacional de saúde. Com o partido no comando, foram 122 parcerias firmadas, contra nenhuma durante o governo Bolsonaro. Durante o mandato deste, pelo contrário, o programa sofreu muita resistência. Em 2019, além da extinção do Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde (Deciis), órgão responsável pelo programa, dentro da Secretaria de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) – atual Sectics –, as PDPs passaram por um grande processo de revisão[2]. Como resultado, pelo menos 19 foram suspensas para reavaliação, em conformidade com a legislação e cumprimento de cronogramas.

Mesmo que não possa ser dito que o programa das PDPs foi realmente abandonado durante o governo Bolsonaro, é seguro dizer que, ao menos, parou no tempo. Sem a celebração de novas parcerias, sua tendência era, inevitavelmente, chegar ao fim. De 122 PDPs firmadas, restam apenas 60 vigentes[3], enquanto 18 outras encontram-se suspensas[4] e outras 44 foram extintas[5].

No âmbito do programa, o Ministério da Saúde já desembolsou mais de R$ 26 bilhões, distribuídos do seguinte modo:

Em um governo como o anterior, marcado por cortes no orçamento, principalmente na área de pesquisa e desenvolvimento e inovação em saúde, trata-se de gasto total considerável e que, segundo seus membros, poderia ser alocado para outras alternativas[6]. Com a aprovação da chamada PEC da Transição, o orçamento do novo governo para 2023 ganhou um fôlego de R$ 145 bilhões, o que significou ganhos para o Ministério da Saúde da ordem de mais de R$ 22 bilhões e um orçamento total de mais de R$ 183 bilhões[7].

Além disso, na linha do discurso e das promessas de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o orçamento destinado ao fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde passou de pouco mais de R$ 36 milhões (valor previsto no Projeto de Lei Orçamentária aprovado pelo governo Bolsonaro) para mais de R$ 1 bilhão (valor previsto na Lei Orçamentária aprovada pelo governo atual)[8].

Esses valores parecem confirmar a possibilidade de retomada de programas como PDPs, não sendo mera coincidência que o presidente Lula tenha nomeado Gadelha para comandar a Sectics. Afinal, ele já ocupara a função de chefe da SCTIE, órgão antecessor da Sectics, entre 2011 e 2015. Foi justamente o período de consolidação do arcabouço normativo do programa das PDPs, assim como do surgimento das primeiras parcerias formais no âmbito do programa[9]. Além disso, Gadelha sempre foi um grande difusor do fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde por meio do uso do poder de compra do Estado, sendo extensa a sua bibliografia sobre o tema[10].

A nomeação de Nísia Trindade como ministra da Saúde também parece apontar para uma possível retomada de programas que, como o das PDPs, visem ao fortalecimento da produção nacional de insumos. Em seu discurso de posse, ela afirmou que a meta é preparar o Brasil para produzir 70% de suas necessidades em saúde. Segundo a ministra, o objetivo faz parte dos esforços do novo governo para fortalecer a produção local de medicamentos, produtos para a saúde e vacinas, reduzindo a dependência externa, tema muito discutido durante a pandemia da Covid-19.

Trindade era presidente da Fiocruz durante a celebração do contrato de transferência de tecnologia entre o laboratório público, a Universidade de Oxford e a empresa AstraZeneca. O acordo ocorreu no formato de encomenda tecnológica, outro instrumento além das PDPs previsto pela Política Nacional de Inovação Tecnológica na Saúde (a Pnits, prevista pelo Decreto 9.245/2017) para o fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde.

Apesar de as PDPs não terem sido usadas (ainda que a Fiocruz seja parte de 1/3 das parcerias atualmente vigentes, vale dizer), o papel desempenhado por Trindade em um importante marco para o Complexo Industrial da Saúde soma-se ao background de Gadelha e indica com bastante clareza o mindset do grupo escolhido pelo presidente Lula para comandar o Ministério da Saúde.

O objetivo do novo governo é claro: fortalecer a produção nacional de insumos e produtos para saúde, de modo a reduzir substancialmente a vulnerabilidade e a dependência externa do país. Agora, resta saber se, para isso, os caminhos serão realmente tão novos assim – com a criação de novos instrumentos destinados ao fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde – ou se o arcabouço legislativo e regulamentar já posto será utilizado[11], passando, quem sabe, pelas já conhecidas PDPs.

______

[1] Vide definição disponível em https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/sectics/deciis/pdp e Portaria MS 2531/2014, artigo 2º, I, e artigo 3º, I e II.

[2] Em 2017, durante o governo Temer, já havia sido extinto o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (Gecis), uma importante ferramenta de articulação com o setor privado na implementação do programa das PDPs. Tanto o Gecis quanto o Deciis foram recriados durante o governo Bolsonaro, mas, com o resultado das eleições favorável ao PT, a estrutura e as atribuições de ambos os órgãos estão sendo revistas pelo novo governo.

[3] De acordo com dados do Ministério da Saúde, atualizados em 15/12/2022 e disponíveis em https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/sectics/deciis/pdp/produtos-objeto-de-pdp/medicamentos-vacinas-e-hemoderivados/parcerias-vigentes.  

[4] De acordo com dados do Ministério da Saúde, atualizados em 15/12/2022 e disponíveis em https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/sectics/deciis/pdp/produtos-objeto-de-pdp/medicamentos-vacinas-e-hemoderivados/parcerias-suspensas.  

[5] De acordo com dados do Ministério da Saúde, atualizados em 15/12/2022 e disponíveis em https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/sectics/deciis/pdp/produtos-objeto-de-pdp/medicamentos-vacinas-e-hemoderivados/parcerias-extintas.

[6] Conforme divulgado pela imprensa em https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/orcamento-da-saude-sofre-cortes-que-podem-chegar-a-r-60-bilhoes-18112022.  

[7] Conforme dados disponibilizados em: https://portaldatransparencia.gov.br/orgaos-superiores/36000?ano=2023.  

[8] De acordo com os valores previstos no PLOA 2023 e na LOA 2023.

[9] Em 2012, o Ministério da Saúde editou Portaria MS 837/2012, em que, pela primeira vez, surge a nomenclatura “Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs)”, com a definição de diretrizes e critérios para o seu estabelecimento, mesmo que de forma incipiente. Ainda em 2014, o órgão editou a Portaria MS 2.531/2014, estabelecendo arcabouço normativo mais robusto para o programa. Embora a Portaria MS 2.531/2014 tenha sido revogada pela Portaria de Consolidação MS 5/2017, o conteúdo da primeira foi, na prática, apenas incorporado pela segunda, a qual continua sendo substancialmente a principal fonte normativa do programa das PDPs, ainda que como parte de outra norma.

[10] Vide, por exemplo, o artigo “Complexo Industrial da Saúde e a Necessidade de um Enfoque Dinâmico na Economia da Saúde”, publicado por Gadelha em 2003 e disponível em https://www.scielo.br/j/rsp/a/fkCDMSmRsjMn6GDTDKmWGnc/?lang=en.

[11] Destacam-se, nesse sentido, mas apenas a título exemplificativo, a Lei 10.973/2004, o Decreto 9.245/2017, e o Decreto 9.283/2018.

Previous Post

There is no previous post

Back to all posts

Next Post

There is no next post

Back to all posts

RECENT PUBLICATIONS

LINKEDIN FEED

Newsletter

Register your email and receive our updates

Thank you! Your submission has been received!
Oops! Something went wrong while submitting the form.

FOLLOW US ON SOCIAL MEDIA

Newsletter

Register your email and receive our updates-

Thank you! Your submission has been received!
Oops! Something went wrong while submitting the form.

FOLLOW US ON SOCIAL MEDIA