
1. Introdução
Um dos assuntos mais comentados dos últimos anos no Brasil foi a introdução e a rápida expansão do mercado das chamadas bets. De forma avassaladora, as bets foram dominando o mercado de apostas esportivas, tornando-se o setor que atualmente mais patrocina os times brasileiros de futebol.
A popularização desse mercado trouxe consigo debates intensos sobre seus impactos sociais e econômicos: de um lado, a promessa de geração de receita e arrecadação tributária; de outro, preocupações legítimas sobre vício em jogos, endividamento e vulnerabilidade social, além de preocupações relacionadas aos crimes de lavagem de dinheiro. Diante desse cenário, sobreveio a Lei nº 14.740/2023, que regulamenta a “modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa” – modalidade na qual o apostador sabe previamente quanto pode ganhar caso acerte o resultado.
A nova lei foi editada com três objetivos principais: (i) proteger os grupos sociais mais vulneráveis dos efeitos negativos do jogo; (ii) estabelecer regras de fiscalização das atividades e tributação; e (iii) prevenir crimes financeiros, como lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo.
Contudo, o que muita gente não sabe é que, embora tenha ficado conhecida como “a lei das bets”, a referida legislação regula mais do que as apostas esportivas. Além das apostas vinculadas a “eventos reais de temática esportiva”, a lei também se aplica a demais jogos virtuais oferecidos em meio eletrônico, como roletas virtuais e até os populares jogos conhecidos como “jogo do tigrinho”, que podem se enquadrar na definição legal de apostas de quota fixa. Para que seja legalizado no Brasil, entretanto, precisa cumprir uma série de requisitos.
2. Novo marco regulatório
Com o advento da Lei nº 14.740/2023, que em breve completará dois anos, o Estado brasileiro deu um passo significativo rumo à formalização e à supervisão de um setor que, embora movimentasse bilhões de reais, operava à margem da legislação. Até então, as apostas mantinham-se em uma zona de proibição generalizada, herdada do Decreto-Lei nº 9.215/1946, que vedava a exploração de jogos de azar em todo o território nacional. Apesar disso, a prática nunca desapareceu, apenas migrou para meios informais, para o exterior ou, mais recentemente, para o ambiente digital.
Nesta mesma seara, o Decreto nº 11.907/2024 criou a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA), órgão vinculado ao Ministério da Fazenda. A SPA se tornou o responsável por autorizar, conceder, regulamentar, normatizar, monitorar, supervisionar, fiscalizar e sancionar as empresas do setor da áreas de apostas de quota fixa.
A regulamentação, neste contexto, foi necessária para trazer maior segurança jurídica para os consumidores e empresas que tenham possuem interesse em operar no Brasil. A legislação reconhece a existência das apostas de “quota fixa”, impõe requisitos para o funcionamento das empresas operadoras e define competências dos órgãos reguladores.
2.1. Quem pode operar o Brasil?
A legislação exige que, para operar no Brasil, os seguintes requisitos devem ser cumpridos:
- Autorização prévia: a empresa precisa obter autorização específica concedida pelo SPA, podendo ser outorgada com prazo de duração de cinco anos.
- Sede, representante legal e administração no Brasil: a pessoa jurídica deve ser constituída segundo a legislação brasileira, com sede e administração no território nacional.
- Participação brasileira: ao menos 20% do capital social deve pertencer, direta ou indiretamente, a uma pessoa natural ou jurídica brasileira.
- Representante legal: a empresa deve designar representante legal no país, responsável pelo relacionamento com o Ministério da Fazenda.
- Estrutura e capacidade técnica: é necessário comprovar estrutura compatível para o exercício da atividade, incluindo:
- Conhecimento e experiência prévia em jogos, apostas ou loterias, por pelo menos um dos integrantes do grupo de controle;
- Requisitos para posse e exercício de cargos de direção ou gerência;
- Estrutura de atendimento aos apostadores, incluindo canal eletrônico gratuito e ouvidoria.
- Tecnologia da informação: a empresa deve possuir infraestrutura tecnológica compatível com os requisitos de segurança cibernética, com certificação reconhecida nacional ou internacionalmente.
- Integridade esportiva: o agente operador deve integrar ou se associar a organismos nacionais ou internacionais de monitoramento da integridade esportiva.
- Prevenção à lavagem de dinheiro: é obrigatória a adoção e implementação de políticas e controles internos de prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo, à proliferação de armas de destruição em massa e à manipulação de resultados e outras fraudes.
- Vedação a conflitos de interesse: é proibida a participação, direta ou indireta, de sócios ou acionistas controladores de operadoras de apostas em Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs) ou em outras entidades esportivas profissionais.
- Atendimento aos usuários: a operadora deve oferecer canais de atendimento aos apostadores e ouvidoria.
- Pagamento de outorga: a expedição da autorização para exploração de apostas de quota fixa será condicionada ao recolhimento do valor fixo de contraprestação de outorga, o qual pode ser de até R$ 30.000.000,00, considerado o uso de três marcas comerciais a serem exploradas pela pessoa jurídica.
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2.2. Proteção do consumidor e jogo responsável
A Portaria SPA/MF nº 1231/2024 estabelece regras e diretrizes para o jogo responsável com o objetivo de prever e mitigar os malefícios individuais ou coletivos decorrentes da atividade. Dentre as regras, destacam-se:
- Idade mínima: é proibida a participação de menores de 18 anos em apostas de quota fixa, devendo o agente operador de apostas impedir o cadastro ou uso de seu sistema por menores.
- Autoexclusão voluntária: as plataformas devem oferecer ferramentas que permitam ao apostador solicitar, a qualquer tempo, sua exclusão temporária ou definitiva dos ambientes de jogo.
- Limites de gastos: os operadores devem disponibilizar mecanismos permitindo que apostadores fixem limites de aposta por tempo transcorrido, perda financeira, valor total depositado ou quantidade de apostas.
- Mensagens de alerta: exibir mensagens de alerta sobre o risco de dependência em jogos.
- Ações de conscientização: o agente operador de apostas deve promover a conscientização sobre os riscos de dependência e de transtornos do jogo patológico.
Além disso, a publicidade das apostas passa a ser regulada: não poderá ser dirigida a menores, tampouco sugerir a obtenção de ganho fácil ou associar a ideia de sucesso ou aptidões extraordinárias a apostas. As ações de marketing também não podem, de acordo com a Portaria, encorajar as apostas em excesso. Essa medida busca conter o estímulo exagerado ao consumo de apostas, especialmente entre jovens e pessoas em vulnerabilidade econômica.
Com isso, a lei busca equilibrar o incentivo à atividade econômica com a necessidade de proteger a saúde mental e financeira da população, reforçando o papel do Estado como regulador social.
2.3. Políticas de combate à lavagem de dinheiro e de integridade
Outro ponto importante da legislação é a imposição de práticas de governança corporativa que visam à prevenção à lavagem de dinheiro. Tais práticas se alinham à Lei nº 9.613/1998, que regulamenta o crime de lavagem de dinheiro e ocultação de bens, direitos e valores, e à Lei Antiterrorismo (Lei nº 13.620/2016), além de zelar pela boa prática do jogo responsável.
A lei prevê que a concessão e a continuidade da autorização das operadoras para explorar apostas de quota fixa dependem que a implementação de políticas, procedimentos e controles internos destinados sejam comprovados. Tais políticas e procedimento estão relacionados a:
- Prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa, com observância dos deveres previstos na Lei nº 9.613/1998 (Lei de Lavagem de Dinheiro) e na Lei nº 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo).
- Prevenção à manipulação de resultados e a outras fraudes que possam comprometer a integridade das competições e a confiança do público.
- Monitoramento contínuo das apostas, com análise e seleção de operações potencialmente suspeitas, de modo a identificar padrões atípicos que indiquem lavagem de dinheiro ou financiamento de atividades ilícitas.
- Comunicação imediata ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) das operações que apresentem fundada suspeita de lavagem de dinheiro ou financiamento do terrorismo.
Essas exigências refletem o esforço do legislador em integrar o mercado de apostas ao sistema nacional de prevenção e combate à criminalidade financeira, garantindo que o novo setor opere dentro de parâmetros de transparência e rastreabilidade.
A legislação também impõe medidas específicas voltadas à integridade das apostas, exigindo que os agentes operadores integrem organismos nacionais ou internacionais de monitoramento. O objetivo é assegurar a cooperação entre as empresas de apostas, as entidades esportivas e os órgãos públicos, possibilitando o compartilhamento de informações relevantes sobre apostas suspeitas ou eventos potencialmente manipulados. Além de objetivar a proteção do sistema financeiro contra crimes de lavagem e financiamento ilícito, essa medida tem como objetivo garantir a legitimidade das competições esportivas.
2.4. O alcance ampliado do conceito de “jogo”
Embora popularmente conhecida como a “lei das bets”, a Lei nº 14.740/2023 vai muito além das apostas esportivas. O texto legal define como aposta de quota fixa toda modalidade em que o apostador saiba, no momento da aposta, quanto poderá ganhar em caso de acerto – independentemente de o evento ser esportivo ou não.
Com essa redação, o legislador não apenas regulou o fenômeno das apostas esportivas, mas criou um marco jurídico mais amplo, que abrange outras formas de jogos online baseados em apostas de resultado previamente determinado.
Com a edição da Portaria SPA/MF nº 1207/2024, que estabelece requisitos técnicos dos jogos online, fica possível denotar que os jogos online alcançam outras modalidades, como, por exemplo, jogos de cartas, roletas virtuais, jogos de colisão e blackjack, desde que sejam oferecidos por operadores devidamente autorizados e sob supervisão da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (SPA/MF).
Para tanto, a Portaria prevê que:
- Os jogos devem apresentar, no momento da aposta, fator de multiplicação para cada unidade de moeda nacional apostada, que defina o montante a ser recebido pelo apostador em caso de premiação.
- Os resultados devem ser determinados por desfecho de evento futuro aleatório, a partir de um gerador randômico de números, de símbolos, de figuras ou de objetos definido no seu sistema de regras.
- As tabelas de pagamento, abrangendo todas as possibilidades de ganho do apostador, devem ser disponibilizadas ao apostador antes da realização das apostas no respectivo jogo online.
Dessa forma, jogos amplamente conhecidos, como o famoso “jogo do tigrinho”, podem ser enquadrados no conceito de aposta de quota fixa e, portanto, potencialmente legalizados, desde que observadas as exigências de regulação previstas na legislação. Enquanto não houver tal enquadramento, contudo, permanecem ilegais.
A Portaria, por sua vez, exclui expressamente do âmbito de incidência da norma os fantasy games, os jogos de habilidade e os jogos multiapostador, por entender que não se enquadram no conceito de aposta de quota fixa.
3. Conclusão
A Lei nº 14.740/2023 representa um marco regulatório abrangente para o mercado de apostas no Brasil. Ao estabelecer regras claras de autorização, supervisão, proteção ao consumidor e integridade das apostas, a legislação visa garantir que a exploração das apostas de quota fixa ocorra dentro de parâmetros legais e fiscalizados, equilibrando o incentivo econômico com a responsabilidade social. Neste contexto, ainda, foi criada a Secretaria de Prêmios e Apostas, por meio do Decreto nº 11.907/24, com a responsabilidade de regular e fiscalizar o mercado de apostas de quota fixa, dentre outras competências.
Além de regulamentar as apostas esportivas, a Lei nº 14.740/2023 abarca outras modalidades de jogos online baseadas em apostas de resultado previamente determinado, como roletas virtuais, jogos de cartas e blackjack. A Portaria SPA/MF nº 1207/2024 complementa essa regulamentação para definir requisitos técnicos e de segurança para os jogos online, bem como para limitar o enquadramento dos jogos de modalidade de evento virtual de jogo online de aposta de quota fixa, afastando os fantasy games e os jogos de habilidade. Já a Portaria SPA/MF nº 1231/2024, por sua vez, estabelece diretrizes de jogo responsável, com medidas de prevenção ao vício, limite de gastos, autoexclusão voluntária, mensagens de alerta e regras para publicidade, reforçando a proteção dos consumidores e a responsabilidade social das operadoras.