A Lei da Morte Digna no Uruguai

August 22, 2025

Conforme noticiado pela revista Veja, a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou em 13 de agosto de 2025 a Lei da Morte Digna, por 64 votos a 29, abrindo caminho para legalizar a eutanásia no país. Agora, haverá a votação no Senado para que a lei possa produzir seus efeitos jurídicos.

Mesmo diante de um tema bastante controverso, especialmente em razão do conservadorismo de ideologias religiosas, o Uruguai, um país conhecido por sua abordagem progressista em diversas pautas sociais, tomou a iniciativa de discutir tema que desperta diferentes pontos de vista sob os prismas do direito e da ética. A questão da morte digna, que abrange eutanásia e suicídio assistido, tem emergido como um dos debates bioéticos e legais mais prementes do século XXI.

A aprovação da Lei da Morte Digna no Uruguai representa um marco significativo, não apenas para sua população, mas também para o restante da América Latina.

1. O Drama do DJ Fabo

Essa questão, na verdade, já havia sido motivo de ampla repercussão mundial em 2017, com o drama vivido pelo DJ italiano Fabiano Antoniani.

Conhecido como DJ Fabo, Fabiano ficou tetraplégico e cego após um acidente automobilístico em 2014. Em 2017, diante do sofrimento que considerava intolerável e da ausência de previsão legal clara para eutanásia ou suicídio assistido na Itália, buscou o suicídio assistido na Suíça, país onde a prática é possível sob condições específicas. O ativista Marco Cappato, que o acompanhou, posteriormente se apresentou às autoridades italianas, gerando um processo que culminou em decisão paradigmática da Corte Constitucional (Sentenza 242/2019).

Eis os elementos-chave do caso e quais foram os desdobramentos na Itália:

  • O caso revelou a lacuna normativa italiana e impulsionou intenso debate público e parlamentar sobre o direito à morte digna.
  • A Corte Constitucional italiana, ao julgar a questão em 2019, reconheceu a possibilidade de não punibilidade do auxílio ao suicídio em condições estritas (doença grave e irreversível, sofrimento intolerável, capacidade de decidir, e acompanhamento pelo sistema público de saúde), catalisando iniciativas legislativas subsequentes.

O episódio ampliou a visibilidade internacional do tema, integrando uma narrativa comparada com o Canadá, Benelux, Espanha, Suíça e de alguns estados norte-americanos, como Califórnia, Colorado, Havaí, Maine, Nova Jersey, Novo México, Oregon, Vermont, Washington e Washington, DC.

2. O caso Fernando Sureda

Fernando Sureda, ex-presidente da Associação Uruguaia de Futebol, diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença considerada como neurodegenerativa que afeta paulatinamente os neurônios motores que acarretam a perda gradual de movimentos, fala, mobilidade, deglutição e respiração, defendeu publicamente, em 2019, o seu direito de escolher o momento da própria morte. Fernando faleceu naquele mesmo ano, mas sua iniciativa acabou suscitando uma ampla discussão acerca do direito daquele que se encontra em uma situação terminal, em ter o direito de terminar licitamente o seu sofrimento.

Posteriormente, quem empunhou a bandeira para fomentar essa discussão foi o presidente do país Yamandú Orsi, que apoiou abertamente a causa, reforçando a liderança que o Uruguai exerce em questões de natureza social.

3. Eutanásia x Ortotanásia x Suicídio Assistido

Existem 3 conceitos sobre o tema que são muito próximos, mas que precisam ser bem entendidos para quem pretende conhecer melhor e discutir o tema. Abaixo temos uma breve abordagem dos três conceitos, sob os prismas ético, legal e médico:

Eutanásia

Definição: ato intencional, por um terceiro (geralmente profissional de saúde), de causar diretamente a morte de um paciente a seu pedido, para aliviar sofrimento irreversível e intolerável.

Prisma ético: centra-se na tensão entre autonomia (autodeterminação do paciente) e não maleficência (não causar dano), com ênfase na proporcionalidade e na compaixão diante do sofrimento refratário.

Prisma legal: em poucos países é lícita sob condições estritas; onde não é autorizada, configura crime. Onde é permitida (por exemplo, Holanda, Bélgica), exige requisitos objetivos, revisões após o óbito e documentação rigorosa.

Prisma médico: envolve fármacos letais administrados pelo médico, protocolos, duplo controle de capacidade e consentimento.

Ortotanásia

Definição: permitir que a morte ocorra no “tempo certo”, evitando obstinação terapêutica (tratamentos fúteis ou desproporcionais) e priorizando cuidados paliativos e conforto. Inclui suspensão de suporte desproporcional quando não há benefício clínico.

Prisma ético: defende a dignidade no fim da vida, respeitando limites clínicos e evitando prolongamento indevido do processo de morrer.

Prisma legal: em muitos ordenamentos, é lícita e até devida, sob diretrizes de direitos do paciente, consentimento informado, diretivas antecipadas e boas práticas paliativas.

Prisma médico: requer avaliação multiprofissional, comunicação transparente, manejo de sintomas e planejamento de cuidados.

Suicídio Assistido

Definição: o próprio paciente realiza o ato letal (por exemplo, ingerindo medicação), com auxílio de terceiros que fornecem meios, informações e acompanhamento.

Prisma ético: compartilha com a eutanásia a valorização da autonomia, mas transfere para o paciente o ato final, o que para alguns reduz a assimetria moral da intervenção médica direta.

Prisma legal: permitido em racionalidades distintas (por exemplo, Suíça, vários estados dos EUA, Canadá), sempre com salvaguardas quanto à capacidade, voluntariedade e terminalidade ou sofrimento intratável.

Prisma médico: os profissionais prescrevem, avaliam elegibilidade e informam riscos; o ato final é do paciente.

Como discutido em análises de bioética divulgadas em espaços especializados, inclusive nesse blog, as distinções fundamentais orbitam três eixos: quem pratica o ato terminal (médico ou paciente), a natureza do ato (causar a morte versus não impedir sua evolução fisiológica) e o contexto de consentimento informado e capacidade decisória. Do ponto de vista jurídico-penal, o elemento da vontade (pedido livre e esclarecido) e a adequação a requisitos legais específicos são determinantes para diferenciar práticas permitidas de ilícitos.

4. Principais Pontos da Lei

Na verdade, a morte digna que apelida a própria lei decorre do direito à morte assistida para adultos mentalmente capazes, diagnosticados com doenças terminais ou incuráveis, que sofram de “sofrimentos insuportáveis”. São considerados pontos principais da Lei da Morte Digna uruguaia:

  • Ser maior de idade, estar mentalmente apto, ter uma doença terminal ou incurável e um sofrimento insuportável.
  • O paciente deve registrar seu pedido por escrito, com testemunhas, e tem o direito de revogar o pedido a qualquer momento.
  • A solicitação será avaliada por dois médicos. Se houver divergência, uma junta médica decidirá.

Um ponto muito importante e que ainda não está claro é como a lei abordaria a questão dos cuidados paliativos. Para que a escolha pela morte digna, quando legalizada, seja uma opção livre e informada, e não apenas a única alternativa ao sofrimento insuportável, ela deve ser acompanhada de opções paliativas relevantes. Isso exigiria investimentos em formação de profissionais, ampliação de serviços em todo o território nacional e conscientização pública sobre os benefícios dos cuidados paliativos.

Outro ponto importante é o impacto na discussão sobre a autonomia do paciente e o papel do médico que deixaria de ser apenas um agente de cura e manutenção da vida a todo custo para se tornar também um facilitador de uma morte digna, mediante vontade autônoma do paciente e condições médicas atendidas. Isso exigiria uma reavaliação da ética médica, aprimoramento da comunicação em fim de vida e desenvolvimento de protocolos que protejam tanto o paciente quanto o profissional.

Finalmente, a aprovação dessa lei no Uruguai reforça a posição do único país sul-americano onde a eutanásia é legal e devidamente regulamentada: a Colômbia. Entretanto, é interessante observar que tal direito colombiano não se originou de uma lei, mas sim de uma série de decisões da Corte Constitucional, que desde 1997 despenalizou a eutanásia em casos de doença terminal e sofrimento insuportável, exigindo posterior regulamentação pelo Ministério da Saúde. Mais recentemente, em 2021, a Corte estendeu o direito a pacientes com doenças não-terminais que causem sofrimento intenso e incurável. Isso demonstra o papel crucial do judiciário em avançar pautas de direitos em um contexto de inércia legislativa.

Enquanto Chile e Argentina têm desenvolvido debates internos intensos em suas casas legislativas a respeito do tema, a eutanásia e o suicídio assistido são considerados crimes (homicídio ou instigação/auxílio ao suicídio), respectivamente no Brasil.

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A Lei da Morte Digna no Uruguai

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Conforme noticiado pela revista Veja, a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou em 13 de agosto de 2025 a Lei da Morte Digna, por 64 votos a 29, abrindo caminho para legalizar a eutanásia no país. Agora, haverá a votação no Senado para que a lei possa produzir seus efeitos jurídicos.

Mesmo diante de um tema bastante controverso, especialmente em razão do conservadorismo de ideologias religiosas, o Uruguai, um país conhecido por sua abordagem progressista em diversas pautas sociais, tomou a iniciativa de discutir tema que desperta diferentes pontos de vista sob os prismas do direito e da ética. A questão da morte digna, que abrange eutanásia e suicídio assistido, tem emergido como um dos debates bioéticos e legais mais prementes do século XXI.

A aprovação da Lei da Morte Digna no Uruguai representa um marco significativo, não apenas para sua população, mas também para o restante da América Latina.

1. O Drama do DJ Fabo

Essa questão, na verdade, já havia sido motivo de ampla repercussão mundial em 2017, com o drama vivido pelo DJ italiano Fabiano Antoniani.

Conhecido como DJ Fabo, Fabiano ficou tetraplégico e cego após um acidente automobilístico em 2014. Em 2017, diante do sofrimento que considerava intolerável e da ausência de previsão legal clara para eutanásia ou suicídio assistido na Itália, buscou o suicídio assistido na Suíça, país onde a prática é possível sob condições específicas. O ativista Marco Cappato, que o acompanhou, posteriormente se apresentou às autoridades italianas, gerando um processo que culminou em decisão paradigmática da Corte Constitucional (Sentenza 242/2019).

Eis os elementos-chave do caso e quais foram os desdobramentos na Itália:

  • O caso revelou a lacuna normativa italiana e impulsionou intenso debate público e parlamentar sobre o direito à morte digna.
  • A Corte Constitucional italiana, ao julgar a questão em 2019, reconheceu a possibilidade de não punibilidade do auxílio ao suicídio em condições estritas (doença grave e irreversível, sofrimento intolerável, capacidade de decidir, e acompanhamento pelo sistema público de saúde), catalisando iniciativas legislativas subsequentes.

O episódio ampliou a visibilidade internacional do tema, integrando uma narrativa comparada com o Canadá, Benelux, Espanha, Suíça e de alguns estados norte-americanos, como Califórnia, Colorado, Havaí, Maine, Nova Jersey, Novo México, Oregon, Vermont, Washington e Washington, DC.

2. O caso Fernando Sureda

Fernando Sureda, ex-presidente da Associação Uruguaia de Futebol, diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença considerada como neurodegenerativa que afeta paulatinamente os neurônios motores que acarretam a perda gradual de movimentos, fala, mobilidade, deglutição e respiração, defendeu publicamente, em 2019, o seu direito de escolher o momento da própria morte. Fernando faleceu naquele mesmo ano, mas sua iniciativa acabou suscitando uma ampla discussão acerca do direito daquele que se encontra em uma situação terminal, em ter o direito de terminar licitamente o seu sofrimento.

Posteriormente, quem empunhou a bandeira para fomentar essa discussão foi o presidente do país Yamandú Orsi, que apoiou abertamente a causa, reforçando a liderança que o Uruguai exerce em questões de natureza social.

3. Eutanásia x Ortotanásia x Suicídio Assistido

Existem 3 conceitos sobre o tema que são muito próximos, mas que precisam ser bem entendidos para quem pretende conhecer melhor e discutir o tema. Abaixo temos uma breve abordagem dos três conceitos, sob os prismas ético, legal e médico:

Eutanásia

Definição: ato intencional, por um terceiro (geralmente profissional de saúde), de causar diretamente a morte de um paciente a seu pedido, para aliviar sofrimento irreversível e intolerável.

Prisma ético: centra-se na tensão entre autonomia (autodeterminação do paciente) e não maleficência (não causar dano), com ênfase na proporcionalidade e na compaixão diante do sofrimento refratário.

Prisma legal: em poucos países é lícita sob condições estritas; onde não é autorizada, configura crime. Onde é permitida (por exemplo, Holanda, Bélgica), exige requisitos objetivos, revisões após o óbito e documentação rigorosa.

Prisma médico: envolve fármacos letais administrados pelo médico, protocolos, duplo controle de capacidade e consentimento.

Ortotanásia

Definição: permitir que a morte ocorra no “tempo certo”, evitando obstinação terapêutica (tratamentos fúteis ou desproporcionais) e priorizando cuidados paliativos e conforto. Inclui suspensão de suporte desproporcional quando não há benefício clínico.

Prisma ético: defende a dignidade no fim da vida, respeitando limites clínicos e evitando prolongamento indevido do processo de morrer.

Prisma legal: em muitos ordenamentos, é lícita e até devida, sob diretrizes de direitos do paciente, consentimento informado, diretivas antecipadas e boas práticas paliativas.

Prisma médico: requer avaliação multiprofissional, comunicação transparente, manejo de sintomas e planejamento de cuidados.

Suicídio Assistido

Definição: o próprio paciente realiza o ato letal (por exemplo, ingerindo medicação), com auxílio de terceiros que fornecem meios, informações e acompanhamento.

Prisma ético: compartilha com a eutanásia a valorização da autonomia, mas transfere para o paciente o ato final, o que para alguns reduz a assimetria moral da intervenção médica direta.

Prisma legal: permitido em racionalidades distintas (por exemplo, Suíça, vários estados dos EUA, Canadá), sempre com salvaguardas quanto à capacidade, voluntariedade e terminalidade ou sofrimento intratável.

Prisma médico: os profissionais prescrevem, avaliam elegibilidade e informam riscos; o ato final é do paciente.

Como discutido em análises de bioética divulgadas em espaços especializados, inclusive nesse blog, as distinções fundamentais orbitam três eixos: quem pratica o ato terminal (médico ou paciente), a natureza do ato (causar a morte versus não impedir sua evolução fisiológica) e o contexto de consentimento informado e capacidade decisória. Do ponto de vista jurídico-penal, o elemento da vontade (pedido livre e esclarecido) e a adequação a requisitos legais específicos são determinantes para diferenciar práticas permitidas de ilícitos.

4. Principais Pontos da Lei

Na verdade, a morte digna que apelida a própria lei decorre do direito à morte assistida para adultos mentalmente capazes, diagnosticados com doenças terminais ou incuráveis, que sofram de “sofrimentos insuportáveis”. São considerados pontos principais da Lei da Morte Digna uruguaia:

  • Ser maior de idade, estar mentalmente apto, ter uma doença terminal ou incurável e um sofrimento insuportável.
  • O paciente deve registrar seu pedido por escrito, com testemunhas, e tem o direito de revogar o pedido a qualquer momento.
  • A solicitação será avaliada por dois médicos. Se houver divergência, uma junta médica decidirá.

Um ponto muito importante e que ainda não está claro é como a lei abordaria a questão dos cuidados paliativos. Para que a escolha pela morte digna, quando legalizada, seja uma opção livre e informada, e não apenas a única alternativa ao sofrimento insuportável, ela deve ser acompanhada de opções paliativas relevantes. Isso exigiria investimentos em formação de profissionais, ampliação de serviços em todo o território nacional e conscientização pública sobre os benefícios dos cuidados paliativos.

Outro ponto importante é o impacto na discussão sobre a autonomia do paciente e o papel do médico que deixaria de ser apenas um agente de cura e manutenção da vida a todo custo para se tornar também um facilitador de uma morte digna, mediante vontade autônoma do paciente e condições médicas atendidas. Isso exigiria uma reavaliação da ética médica, aprimoramento da comunicação em fim de vida e desenvolvimento de protocolos que protejam tanto o paciente quanto o profissional.

Finalmente, a aprovação dessa lei no Uruguai reforça a posição do único país sul-americano onde a eutanásia é legal e devidamente regulamentada: a Colômbia. Entretanto, é interessante observar que tal direito colombiano não se originou de uma lei, mas sim de uma série de decisões da Corte Constitucional, que desde 1997 despenalizou a eutanásia em casos de doença terminal e sofrimento insuportável, exigindo posterior regulamentação pelo Ministério da Saúde. Mais recentemente, em 2021, a Corte estendeu o direito a pacientes com doenças não-terminais que causem sofrimento intenso e incurável. Isso demonstra o papel crucial do judiciário em avançar pautas de direitos em um contexto de inércia legislativa.

Enquanto Chile e Argentina têm desenvolvido debates internos intensos em suas casas legislativas a respeito do tema, a eutanásia e o suicídio assistido são considerados crimes (homicídio ou instigação/auxílio ao suicídio), respectivamente no Brasil.

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