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O cenário das licitações públicas no Brasil sempre foi um campo fértil para debates sobre eficiência, transparência e, infelizmente, também sobre persistência de práticas de corrupção. A busca incessante por um ambiente mais íntegro, competitivo e ético culminou em um marco regulatório significativo nos últimos anos, impulsionado pela Lei nº 14.133/2021, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Esta legislação, que veio para substituir as antigas Lei nº 8.666/93, Lei nº 10.520/2002 e Lei nº 12.462/2011, introduziu uma série de inovações, com destaque para a formalização da exigência e do incentivo à implementação e manutenção de programas de integridade e compliance nas empresas que almejam contratar com o poder público.
Contudo, a efetividade de qualquer lei depende intrinsecamente de sua regulamentação e da criação de mecanismos que operacionalizem suas diretrizes, permitindo assim a sua efetiva aplicabilidade. Nesse contexto, o Decreto nº 12.304/2024 surgiu no fim de 2024 como um passo fundamental, detalhando os parâmetros e a avaliação dos programas de integridade, nas hipóteses de contratação de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, de desempate de propostas e de reabilitação de licitante ou contratado, no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Complementando essa estrutura, a Portaria Normativa SE/CGU nº 226/2025 foi editada pela Secretaria-Executiva da Controladoria-Geral da União (CGU) em 9 de setembro de 2025. A Portaria estabelece a metodologia específica e os parâmetros para a avaliação desses programas integridade citados pelo Decreto nº 12.304/2024.
Doravante, analisamos a inter-relação sinérgica entre esses instrumentos legais e suas implicações práticas para as organizações que atuam ou desejam atuar como fornecedoras de bens ou serviços para a Administração Pública. Serão abordados o contexto da Nova Lei de Licitações, a análise detalhada do Decreto, o exame aprofundado da Portaria Normativa e a interatividade das três normas.
A RELEVÂNCIA DO COMPLIANCE EM LICITAÇÕES
A Lei nº 14.133/2021 representou um divisor de águas no regime jurídico das licitações e contratos administrativos brasileiros. Elaborada diante da premente necessidade de modernizar e aprimorar os processos de contratação pública e após um longo período de discussões de quase uma década, ela buscou não apenas garantir a probidade e a eficiência na alocação de recursos públicos, mas também fomentar a inovação, a sustentabilidade e a competitividade leal. Antes dela, a Lei nº 8.666/93, embora longeva e fundamental por décadas, não mais atendia plenamente às complexidades e demandas de um Estado moderno e de uma sociedade que clamava por mais transparência, ética e otimização dos recursos públicos na gestão pública. A nova lei introduziu conceitos como a gestão de riscos, planejamento estratégico e a busca pelo melhor valor para a administração – em vez de apenas o menor preço.
Uma das inovações mais significativas da Nova Lei de Licitações é a ênfase conferida aos programas de integridade (compliance). Embora a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) já estabelecesse a possibilidade de mitigação de penalidades para empresas com programas de compliance efetivos, a Lei nº 14.133/2021 elevou o compliance a um novo patamar no contexto das licitações. Ela inseriu o tema em diversas passagens, seja como critério de desempate, como fator de atenuação de sanções e, em certas situações, como requisito indispensável para a contratação.
O artigo 25 da Lei nº 14.133/2021, por exemplo, estabeleceu que a exigência de programas de integridade poderia ser prevista em regulamento como condição para a participação em licitações e para a celebração de contratos, especialmente para contratações de grande vulto (aqueles com valores significativos, a serem definidos em portaria específica) ou em setores considerados de maior risco de fraude e corrupção. Isso significa que, para certas licitações, a ausência de um programa de integridade poderia ser um fator eliminatório. Da mesma forma, o artigo 60, ao tratar dos critérios de desempate em licitações, mencionou expressamente a “implementação de programa de integridade, conforme regulamentação”, conferindo uma vantagem competitiva às empresas que demonstrassem esse compromisso. Já o artigo 156 elencou as sanções administrativas aplicáveis a licitantes e contratados, prevendo a consideração da existência e funcionamento de programas de compliance como fator para a aplicação e dosimetria das penalidades, reforçando o papel preventivo e mitigador do compliance.
Essa integração do compliance na Nova Lei de Licitações não é meramente formal. Ela reflete uma compreensão aprofundada de que a prevenção de ilícitos, a promoção da ética e a governança corporativa devem ser preocupações centrais não apenas do poder público, mas também de seus parceiros privados. Nesse contexto, o programa de compliance deixa de ser um mero diferencial, tornando-se uma ferramenta estratégica de gestão de riscos para as empresas e um mecanismo robusto de garantia de probidade, eficiência e confiança para a administração pública. A sua relevância reside na capacidade de mitigar riscos de fraude, corrupção, conluio, desvio de conduta e outras irregularidades que historicamente assolaram o ambiente licitatório, gerando prejuízos vultosos ao erário e corroendo a confiança da sociedade nas instituições. Ao fomentar a integridade, a lei busca assegurar que os contratos públicos sejam executados com a máxima qualidade e menor custo, beneficiando diretamente o cidadão e, por conseguinte, a sociedade.
ANÁLISE DETALHADA DO DECRETO Nº 12.304/2024
O Decreto nº 12.304/2024 representou a materialização da intenção legislativa expressa na Lei nº 14.133/2021 no que tange aos programas de integridade. Sua função primordial foi regulamentar os aspectos relativos à exigência, avaliação e monitoramento dos programas de compliance em licitações e contratos administrativos, nas hipóteses de contratação de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, de desempate de propostas e de reabilitação de licitante ou contratado, fornecendo a estrutura e as diretrizes necessárias para que as previsões da Lei se tornassem operacionais e aplicáveis.
Principais Diretrizes e Objetivos
O Decreto nº 12.304/2024 adotou uma abordagem sistêmica e pragmática, buscando uniformizar a compreensão e a aplicação dos programas de integridade em todo o âmbito federal. Entre suas principais diretrizes e objetivos, destacam-se:
• Padronização dos requisitos mínimos: o Decreto buscou estabelecer um conjunto mínimo de elementos que um programa de integridade deveria conter para ser considerado efetivo e digno de avaliação. Isso visou evitar a subjetividade na avaliação e garantir que as empresas, ao desenvolverem seus programas, soubessem quais seriam as expectativas da administração pública, promovendo um limite mínimo de qualidade.
• Incentivo qualificado à adesão: ao detalhar os benefícios e as condições para a consideração de programas de compliance como critério de desempate ou mitigação de sanção, o Decreto estimulou as empresas a investirem proativamente em suas estruturas de integridade, transformando a conformidade em um ativo competitivo e um diferencial de mercado.
• Clareza nos parâmetros de avaliação: embora a metodologia detalhada fosse objeto da Portaria da CGU, o Decreto estabeleceu as balizas gerais para a avaliação, definindo a necessidade de um processo transparente, objetivo e baseado em critérios pré-definidos. Além disso, indicou que a avaliação deveria considerar não apenas a existência formal dos elementos do programa, mas, crucialmente, a sua aplicação e efetividade na prática.
• Promoção de uma cultura de integridade sustentável: mais do que uma mera formalidade ou um checklist, o Decreto visou fomentar uma cultura organizacional que valorizasse a ética, a transparência e a conformidade, não apenas como uma obrigação legal, mas como um valor intrínseco e um pilar da sustentabilidade dos negócios.
Como o Decreto Regulamentou e Complementou a Lei nº 14.133/2021
O Decreto nº 12.304/2024 atuou como uma ponte essencial entre os princípios gerais da Lei nº 14.133/2021 e a sua aplicação prática no cotidiano das licitações. Ele detalhou, por exemplo, em quais situações e sob quais condições o programa de integridade seria exigido como condição de participação ou como critério de desempate.
• Exigência e critério de desempate específicos: o Decreto definiu que a exigência de programas de integridade como condição para participar de licitações ou para a celebração de contratos poderia ser aplicada a contratos de grande vulto ou de alta complexidade, ou em setores considerados de maior risco de fraude e corrupção (por exemplo, obras de infraestrutura, concessões de serviços públicos e fornecimento de bens e serviços críticos). Também reiterou que a comprovação da existência e efetividade do programa pode ser utilizada como critério de desempate, dando preferência àqueles licitantes que demonstrem maior compromisso com a integridade, além de outros critérios técnicos e econômicos.
• Definição dos elementos essenciais do programa: o Decreto estabeleceu, de forma inicial, os pilares essenciais de um programa de integridade, os quais deveriam ser desenvolvidos com base na Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) e nas melhores práticas nacionais e internacionais. Tais elementos incluem, mas não se limitam a comprometimento da alta direção, análise e gestão de riscos, código de ética e conduta, canais de denúncia robustos, controles internos eficazes, treinamentos periódicos e due diligence de terceiros.
• Atribuição de competência e centralização: o Decreto designou explicitamente à CGU a competência para estabelecer a metodologia e os parâmetros detalhados para a avaliação dos programas de integridade, o que será minuciosamente detalhado na Portaria Normativa SE/CGU nº 226/2025. Essa atribuição centralizou o conhecimento técnico, a expertise e a padronização, garantindo uma abordagem consistente e especializada em nível federal.
• Reforço à mitigação de sanções: assim como a Lei Anticorrupção, o Decreto reforçou o papel do programa de integridade na atenuação de sanções administrativas previstas na Lei nº 14.133/2021. Contudo, ele enfatizou que essa mitigação só seria possível se o programa fosse comprovadamente efetivo e, especialmente, se tivesse sido implementado e demonstrado funcionamento antes da ocorrência do ilícito, incentivando a prevenção e a detecção precoce.
Impacto Esperado na Condução das Licitações Públicas
O impacto do Decreto nº 12.304/2024 na condução das licitações públicas foi profundo, reconfigurando a dinâmica de mercado:
• Elevação substancial do nível de integridade: a expectativa foi que um número significativamente maior de empresas viesse adotar e aprimorar seus programas de compliance, resultando em um ambiente licitatório mais íntegro, transparente e menos propenso a fraudes, atos de corrupção, conluio entre licitantes e outras práticas ilícitas.
• Qualificação aprimorada dos licitantes: a exigência de programas de integridade funcionaria como um filtro de qualidade moral e ética, atraindo empresas mais éticas, profissionalizadas e com maior governança. Em tese, isso levaria a contratações de melhor qualidade, execução mais eficiente dos contratos e, consequentemente, melhor uso dos recursos públicos.
• Redução de Riscos para a Administração Pública: ao lidar com empresas que possuem programas robustos e comprovadamente efetivos, a administração pública diminuiria seus próprios riscos de se envolver em esquemas de corrupção, de ter contratos mal executados, de enfrentar litígios ou de sofrer danos reputacionais.
• Desafio e Oportunidade para Pequenas e Médias Empresas (PMEs): embora a proporcionalidade fosse um princípio fundamental do compliance, a adequação aos requisitos do programa poderia representar um desafio significativo para PMEs, as quais talvez não possuíssem os mesmos recursos financeiros e humanos de grandes corporações para investir em estruturas de compliance complexas. Este é um ponto que exigiu atenção na aplicação para evitar a exclusão de potenciais fornecedores competitivos. Soluções como frameworks simplificados, programas de apoio governamental e a valorização da proporcionalidade na avaliação foram cruciais para garantir a inclusão.
• Nova dinâmica competitiva: a consideração do compliance como critério de desempate adicionou uma nova camada à dinâmica competitiva. As empresas foram incentivadas a não apenas oferecer o melhor preço ou a melhor técnica, mas também a demonstrar um sólido e verificável compromisso com a ética e a integridade, transformando o compliance em um diferencial estratégico.
PRINCIPAIS ASPECTOS DA PORTARIA NORMATIVA SE/CGU Nº 226/2025
A Portaria Normativa SE/CGU nº 226/2025 é o elo final e mais detalhado na cadeia regulatória do compliance em licitações. Ela traduz as intenções da Lei e as diretrizes do Decreto em uma metodologia prática e minuciosa para a avaliação dos programas de integridade. A CGU, como órgão central do Sistema de Correição do Poder Executivo Federal e com vasta experiência em avaliação de programas de integridade sob a Lei Anticorrupção, é a instituição naturalmente encarregada dessa tarefa, possuindo a expertise necessária para tal.
A Metodologia de Avaliação de Programas de Compliance em Licitações
A Portaria estabelece um processo estruturado, transparente e técnico para a avaliação, que geralmente envolve as seguintes etapas sequenciais:
• Solicitação de avaliação e submissão documental: a empresa interessada, seja para atender a uma exigência específica do edital, para buscar um benefício em caso de desempate ou para fins de atenuação de sanção, apresenta sua solicitação à CGU. Esta solicitação deve ser acompanhada de um dossiê completo, contendo a documentação comprobatória do seu programa de integridade, incluindo, mas não se limitando a código de ética, políticas internas, matriz de riscos, evidências de treinamentos, relatórios de auditoria interna e registros de canais de denúncia.
• Análise documental preliminar e de conformidade: a equipe técnica da CGU realiza uma verificação inicial e exaustiva da documentação submetida. O objetivo é garantir que todos os elementos mínimos exigidos pelo Decreto e pela própria Portaria estejam presentes e que o programa apresente coerência interna e aderência aos requisitos formais. Eventuais inconsistências ou ausências podem gerar pedidos de complementação ou, em casos graves, a rejeição preliminar.
• Avaliação detalhada e de efetividade: esta é a fase crucial, onde se verifica não apenas a existência formal dos elementos do programa (“o que está no papel”), mas, principalmente, sua efetividade, aplicação prática e aderência à cultura organizacional (“o que realmente acontece”). A avaliação é um processo analítico que transcende a mera conferência de documentos, buscando evidências de que o programa é “vivo” e funcional.
• Entrevistas e diligências complementares: para aprofundar a avaliação da efetividade, podem ser realizadas entrevistas com funcionários-chave da empresa, desde a alta direção (CEO, CFO, Compliance Officer) até colaboradores de áreas operacionais (compras, vendas, jurídico, RH), para aferir o nível de conscientização, o conhecimento das políticas e a aplicação prática das diretrizes de compliance. Em casos específicos e justificados, podem ser realizadas visitas in loco ou requisitadas informações adicionais e evidências de controles.
• Elaboração do relatório de avaliação: a equipe da CGU elabora um relatório técnico detalhado com suas conclusões, pontuando os pontos fortes e fracos do programa, identificando lacunas e emitindo um parecer fundamentado sobre sua efetividade, ou a falta dela. Este relatório serve como base para a decisão final.
• Decisão e publicidade: com base no relatório de avaliação, a CGU ou a autoridade competente emitirá uma decisão formal, que pode atestar a efetividade do programa, indicar a necessidade de aprimoramentos e monitoramento ou considerá-lo ineficaz. Os resultados dessa avaliação são cruciais e podem ser utilizados para os fins previstos na legislação (desempate, atenuação de sanção, qualificação para licitações específicas). A publicidade dos resultados, quando aplicável, promove a transparência e serve de referência para o mercado.
Critérios e Parâmetros Utilizados para Essa Avaliação
A Portaria Normativa SE/CGU nº 226/2025 detalha os pilares que compõem um programa de integridade efetivo, espelhando e adaptando as melhores práticas internacionais (como as diretrizes do Departamento de Justiça dos EUA e a ISO 37001 – Sistema de Gestão Antissuborno) e os critérios já estabelecidos pela Lei Anticorrupção. Os critérios de avaliação buscam verificar a robustez, a aderência e a eficácia do programa. Entre os principais parâmetros avaliados, destacam-se:
• Comprometimento e suporte da alta direção (“Tone at the Top”): Análise da dedicação visível, inequívoca e contínua da alta direção da empresa em promover uma cultura de integridade, por meio de declarações públicas, alocação de recursos adequados, participação ativa em treinamentos e estabelecimento de metas de compliance. A existência de um responsável pelo compliance (Compliance Officer ou Comitê de Compliance) com autonomia, autoridade e recursos adequados é um indicativo fundamental.
• Análise e gestão de riscos: a existência de uma metodologia robusta e sistemática de identificação, avaliação, priorização e mitigação dos riscos de corrupção e outras fraudes específicas ao negócio da empresa, especialmente no que tange às interações com a administração pública. O programa deve ser desenhado “sob medida” para os riscos inerentes à organização, sendo dinâmico e revisado periodicamente.
• Código de ética e conduta: um código claro, abrangente, acessível a todos os colaboradores (e, idealmente, a parceiros), que estabeleça os valores, princípios e as diretrizes de comportamento esperados, com foco explícito nas interações com agentes públicos, participação em licitações e execução de contratos. Deve ser amplamente divulgado e compreendido.
• Políticas e procedimentos internos: documentação de políticas específicas para áreas de risco elevado, como brindes e hospitalidades, patrocínios, doações políticas (quando permitido e aplicável), conflito de interesses, uso de informações privilegiadas, e, especialmente, políticas e procedimentos detalhados para a participação em licitações e a gestão da execução de contratos administrativos.
• Canais de denúncia, investigação e proteção ao denunciante: a existência de canais de comunicação seguros, confidenciais e que permitam o anonimato para o reporte de violações ao código de ética ou à lei. Deve haver garantia de não retaliação ao denunciante de boa-fé e um processo de investigação independente, imparcial e bem definido para apurar as denúncias.
• Controles internos e financeiros: mecanismos de controle financeiro e operacional que garantam a conformidade das transações, a segregação de funções, a aprovação adequada de despesas e a prevenção de fraudes contábeis ou desvios de recursos.
• Treinamento e comunicação contínuos: programas regulares e obrigatórios de treinamento e comunicação sobre o código de ética, políticas de compliance e as legislações aplicáveis para todos os colaboradores, adaptados aos diferentes níveis hierárquicos, funções e áreas de atuação. A frequência e a efetividade dos treinamentos são monitoradas.
• Due diligence de terceiros e gestão de fornecedores: procedimentos rigorosos de verificação de integridade (due diligence) de parceiros de negócios, fornecedores, intermediários, agentes e, especialmente, consorciados e subcontratados em licitações e contratos públicos. A gestão de terceiros deve ser contínua, não apenas no momento da contratação.
• Auditoria e monitoramento contínuo: mecanismos de auditoria interna e/ou externa periódica e monitoramento contínuo para avaliar a efetividade do programa, identificar falhas, medir o desempenho (utilizando Key Performance Indicators (KPIs) de compliance) e promover a melhoria contínua e a adaptação às mudanças de risco e regulatórias.
• Investigação interna e ações corretivas: capacidade da empresa de conduzir investigações internas eficazes, imparciais e transparentes em caso de suspeita de ilícitos, aplicando medidas disciplinares adequadas aos responsáveis e implementando ações corretivas para evitar reincidências e fortalecer os controles.
• Proporcionalidade e adaptação: a avaliação considera o porte, a complexidade e o setor de atuação da empresa, bem como os riscos específicos de sua atuação. Um programa de uma PME não será avaliado com os mesmos requisitos de uma grande multinacional, desde que demonstre efetividade proporcional aos seus riscos e recursos.
Requisitos e Expectativas para os Programas de Compliance das Empresas Participantes de Licitações
Para as empresas, a Portaria Normativa nº 226/2025 estabelece diretrizes claras sobre o que é esperado. O programa de compliance deve ser mais do que um mero conjunto de documentos arquivados; ele precisa ser um sistema vivo, dinâmico e intrinsecamente integrado à cultura organizacional.
• Documentação completa, coerente e acessível: todas as políticas, procedimentos, evidências de implementação (por exemplo, atas de reuniões do comitê de ética, registros de treinamentos, relatórios de investigações, contratos de terceiros com cláusulas de integridade) devem estar documentadas de forma organizada, coerente e facilmente acessível para a CGU.
• Implementação real e evidenciada: não basta ter políticas bem escritas; é fundamental demonstrar que elas são efetivamente aplicadas no dia a dia da organização e que os colaboradores as conhecem e as seguem. Isso exige monitoramento constante e capacidade de comprovar a aplicação dos controles.
• Robustez e abrangência: a CGU espera que o programa de integridade não seja apenas um conjunto de documentos formais, mas uma estrutura viva e abrangente. Isso significa que ele deve cobrir todos os aspectos da operação da empresa, desde a alta administração até os colaboradores de linha de frente, e se estender à cadeia de valor (fornecedores, parceiros e intermediários). A robustez implica na existência de políticas e procedimentos claros, canais de denúncia eficazes e protegidos, um código de conduta bem difundido, due diligence de terceiros rigorosa, mecanismos de avaliação de riscos periódicos e um sistema de controles internos que realmente funcione. A abrangência também se manifesta na capacidade de endereçar riscos específicos do setor público, como conflitos de interesse em licitações e a gestão de contratos administrativos.
• Efetividade comprovada: o maior desafio e a principal expectativa é que o programa seja efetivo. Isso significa que ele deve ser capaz de prevenir, detectar e remediar atos de corrupção e outras irregularidades. A CGU buscará evidências de que o programa de integridade funciona na prática, não apenas na teoria. A efetividade é demonstrada por meio de:
o “Tone at the Top” e “Tone from the Middle”: o compromisso visível e genuíno da alta direção e da média gerência com a ética e a integridade.
o Métricas e indicadores: a capacidade da empresa de monitorar e apresentar dados sobre a aplicação do programa, como o número de treinamentos realizados, denúncias recebidas e investigadas, e ações disciplinares aplicadas.
o Auditorias internas e revisões independentes: a realização periódica de auditorias para verificar a aderência aos controles e a sua eficácia.
o Respostas a Incidentes: a prontidão e a adequação das ações tomadas em caso de detecção de irregularidades, incluindo a remediação de danos e a aplicação de sanções internas.
• Melhoria contínua: programas de integridade não são estáticos. A expectativa é que as empresas demonstrem um processo contínuo de avaliação, aprendizado, adaptação e aprimoramento de seus controles, em resposta a novos riscos, mudanças regulatórias ou lições aprendidas com incidentes internos ou externos. Isso envolve:
o Revisões periódicas de risco: atualização constante do mapeamento de riscos de compliance, especialmente aqueles ligados à interação com o setor público.
o Adaptação regulatória: ajustes nas políticas e procedimentos para refletir novas leis, decretos e portarias, como a própria Portaria Normativa SE/CGU nº 226/2025.
o Lições aprendidas: incorporação de aprendizados de investigações internas, auditorias ou até mesmo de casos públicos de corrupção para fortalecer os controles.
o Adoção de melhores práticas: busca e implementação de padrões internacionais, como a ISO 37001 (Sistema de Gestão Antissuborno), que enfatizam a melhoria contínua.
• Cultura de integridade: subjacente a todos esses pontos, a CGU busca a existência de uma verdadeira cultura de integridade, na qual a ética não é apenas uma regra, mas um valor intrínseco à organização. Isso se manifesta na forma como os colaboradores tomam decisões, na abertura para discutir dilemas éticos e na confiança nos canais de denúncia, sem receio de retaliação. Para uma empresa que busca se destacar em licitações públicas, o programa de compliance se torna um pilar estratégico. A ausência de um programa robusto e avaliado positivamente pela CGU poderá não apenas impedir a participação em licitações estratégicas, mas também privá-la de um importante critério de desempate e de uma valiosa ferramenta de mitigação de sanções, impactando diretamente sua reputação e sustentabilidade no mercado.
CORRELAÇÃO ENTRE A PORTARIA NORMATIVA SE/CGU Nº 226/2025, O DECRETO Nº 12.304/2024 E A LEI Nº 14.133/2021
A Lei nº 14.133/2021, o Decreto nº 12.304/2024 e a Portaria Normativa SE/CGU nº 226/2025 não devem ser vistos como instrumentos isolados, mas sim como partes integrantes de um arcabouço jurídico e regulatório coeso e hierarquicamente estruturado. Eles se complementam e se articulam para criar um ecossistema de integridade robusto no ambiente das licitações públicas brasileiras.
Como esses Instrumentos Legais se Complementam e se articulam
A correlação entre essas três normas pode ser visualizada como uma pirâmide regulatória, na qual cada camada é construída sobre a anterior, de forma a tornar objetivos os parâmetros para ser exercido o efetivo cumprimento de tais regulações:
• Lei nº 14.133/2021: a Nova Lei de Licitações funciona como a base dessa pirâmide. Ela estabelece os princípios gerais e as diretrizes mestras, inaugurando a era do compliance nas licitações públicas. É na Lei que se encontra a previsão de que programas de integridade podem ser exigidos ou servir como critério de desempate (Art. 25, § 4º, e Art. 60, inciso IV), mas sem detalhar o “como” ou o “quais” seriam esses programas. Ela expressa a vontade do legislador em modernizar e sanear o ambiente licitatório, instituindo a integridade como um valor fundamental e um requisito para contratações públicas, alinhando-se aos princípios da moralidade, probidade e eficiência.
• Decreto nº 12.304/2024: representa o meio-termo da pirâmide, preenchendo as lacunas deixadas pela Lei ao regulamentar suas previsões. Ele operacionaliza a exigência de compliance, definindo os pilares mínimos de um programa de integridade (geralmente baseados nos pilares da Lei Anticorrupção), as situações em que ele pode ser exigido (por exemplo, contratos de grande vulto ou setores de alto risco) e, crucialmente, designa a CGU como a autoridade competente para estabelecer a metodologia de avaliação. O Decreto dá forma e substância às intenções da Lei, transformando o “poderá ser” em “será assim”, garantindo que a aplicação do compliance seja uniforme e baseada em critérios objetivos em todo o território nacional.
• Portaria Normativa SE/CGU nº 226/2025: no topo da pirâmide, a Portaria Normativa da CGU é o instrumento de execução. Ela traduz as diretrizes do Decreto em um guia prático e detalhado sobre como os programas de integridade serão avaliados. Ela estabelece a metodologia, os critérios pormenorizados, os parâmetros de efetividade e os requisitos de documentação. A Portaria é o manual técnico que a administração pública e as empresas usarão para entender e aplicar as exigências de compliance, garantindo a padronização, a objetividade e a técnica na avaliação. Ela fornece o framework de avaliação, incluindo a pontuação e os elementos específicos a serem verificados, como a existência de uma avaliação de risco robusta e a eficácia dos controles internos.
Essa interdependência cria um ciclo virtuoso, ou seja, enquanto a Lei inova e gera a demanda por integridade, o Decreto organiza essa demanda e atribui responsabilidades, definindo os contornos gerais e, finalmente, a Portaria fornece as ferramentas para que a demanda seja atendida e avaliada de forma eficaz e padronizada. Juntos, eles formam um sistema que busca não apenas punir a corrupção e as fraudes em processos licitatórios, mas, primordialmente, preveni-la e desincentivá-la, promovendo um ambiente de negócios mais ético e transparente.
Implicações Práticas para as Organizações que Atuam em Licitações Públicas
As implicações práticas dessa tríade normativa para as organizações que desejam contratar com o poder público são vastas e exigem uma mudança de paradigma:
• Necessidade inadiável de investimento em compliance: empresas que historicamente negligenciaram ou possuíam programas de compliance apenas formais precisarão realizar investimentos significativos na estruturação, implementação e manutenção de programas efetivos. Este investimento não se limita apenas a recursos financeiros, mas também a tempo, recursos humanos qualificados e, fundamentalmente, ao comprometimento da alta liderança. O compliance deixa de ser um custo discricionário e passa a ser um investimento estratégico. Espera-se que, de fato, isso desestimule a criação de empresas de fachada, muitas vezes criadas tão somente para atender a algum processo licitatório específico.
• Adequação e aprimoramento constante: mesmo empresas com programas de compliance já estabelecidos deverão revisar e adaptar suas políticas e procedimentos à luz dos requisitos específicos do Decreto e da Portaria Normativa. Isso implica realizar uma análise de lacunas detalhada para identificar a necessidade de inclusão de riscos específicos na interação com o setor público. A adaptação pode envolver a revisão de cláusulas contratuais, a criação de treinamentos específicos para equipes de vendas e contratos e o fortalecimento da due diligence de parceiros de negócios que interagem com o governo.
• Vantagem competitiva e diferencial de mercado: empresas com programas de compliance robustos e bem avaliados pela CGU terão uma clara vantagem competitiva. Elas não apenas estarão aptas a participar de licitações mais estratégicas, mas também poderão se beneficiar de critérios de desempate, posicionando-se como parceiras de negócios mais confiáveis e éticas para a administração pública. Isso se traduz em um status de “fornecedor preferencial”, maior confiança de investidores e uma imagem de marca fortalecida, alinhada às crescentes expectativas de ESG (Environmental, Social, and Governance).
• Gestão de riscos proativa e sofisticada: empresas precisarão mapear, avaliar e mitigar os riscos de fraude e corrupção inerentes à sua atuação, com um foco particular nos riscos associados à participação em licitações e à execução de contratos públicos. Ferramentas como risk matrices, control self-assessments e continuous monitoring de transações se tornam essenciais para identificar e endereçar vulnerabilidades antes que se materializem em incidentes.
• Treinamento e engajamento de colaboradores: a efetividade de um programa de compliance depende criticamente do engajamento de todos os colaboradores. Isso demanda treinamentos contínuos, comunicação clara e a promoção de uma cultura organizacional que valorize a ética e a integridade em todos os níveis. Os treinamentos devem ser adaptados aos diferentes públicos (alta gestão, gerência, equipes operacionais) e abordar cenários práticos e dilemas éticos específicos do ambiente de licitações. A existência de um ethics hotline (canal de denúncias) acessível e confiável é vital para encorajar a comunicação de irregularidades sem medo de retaliação.
• Transparência e responsabilidade aumentadas: as organizações serão cobradas por maior transparência em suas operações e por uma maior responsabilidade corporativa. A capacidade de demonstrar a efetividade de seus controles e a prontidão para corrigir falhas será crucial para sua reputação e seu sucesso no setor público. Isso inclui a manutenção de registros detalhados, a capacidade de auditoria de seus processos e a disposição para cooperar com as autoridades em caso de investigações.
Em essência, esses instrumentos legais forçam as empresas a implementarem a integridade como um valor fundamental de sua identidade corporativa, indo além da mera conformidade legal para abraçar uma cultura de ética e responsabilidade que permeia todas as suas operações e decisões estratégicas.