Uma eventual suspensão de patentes de medicamentos e outros produtos de saúde dos Estados Unidos como resposta ao “tarifaço” imposto pelo presidente Donald Trump seria uma medida delicada a ser tomada pelo governo brasileiro, com potencial de reflexos positivos e negativos ao Brasil. É o que afirmam especialistas ouvidos pelo Valor.
A possibilidade de suspender o direito à propriedade intelectual como resposta à sobretaxa de 50% para importações feitas pelos EUA do Brasil foi aventada pelo Planalto. Para isso, o governo precisa antes regulamentar a Lei de Reciprocidade, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em abril, já na esteira das políticas ultra protecionistas de Trump.
A expectativa é que o decreto de regulamentação da lei seja publicado nesta terça-feira (15). O texto da legislação por si só não diz qual o efeito sobre as patentes, apenas estabelece que uma suspensão pode ser adotada “em resposta a medidas unilaterais adotadas por país ou bloco econômico que impactem negativamente a competitividade internacional brasileira”.
Hoje, o Brasil pode suspender o direito à propriedade intelectual por meio da licença compulsória, que autoriza terceiros a explorar uma patente sem o consentimento da empresa que a detém. A companhia, porém, é indenizada.
Nos últimos 30 anos, o governo brasileiro fez o licenciamento compulsório de um remédio só uma vez, 2007: o Efavirenz, usado no tratamento para HIV e produzido pelo laboratório americano Merck Sharp & Dohme. “A decisão foi tomada porque havia uma ameaça grave à sustentabilidade econômica de um tratamento com um medicamento que era usado para tratar praticamente a totalidade de pacientes que naquela época conviviam com HIV”, conta o então ministro da Saúde José Gomes Temporão.
“Mas utilizar o licenciamento compulsório num contexto de guerra tarifária é uma questão distinta”, diz Temporão. O ex-ministro afirma que medicamentos, insumos e equipamentos de saúde americanos têm peso significativo na balança comercial com o Brasil. “O Brasil é altamente dependente de [importações de] medicamentos e de outros produtos e tecnologias, tanto para o SUS como para o setor privado”, diz o ex-ministro.
Na avaliação de Susana van der Ploeg, advogada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e coordenadora do grupo de propriedade intelectual da Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip), a quebra de patentes poderia reduzir custos para pacientes e para o Sistema Único de Saúde. “Essa medida teria um forte impacto dentro dos EUA, por mexer com os interesses da indústria farmacêutica, além de ter um reflexo humanitário aqui, tanto no bolso dos pacientes que precisam desses remédios quanto no próprio SUS”, diz Ploeg.
Medida teria forte impacto nos EUA por mexer com interesses das farmacêuticas
— Susana v. d. Ploeg
Entre os medicamentos comprados dos Estados Unidos estão Trikafta, da empresa Vertex, usado para fibrose cística e cujo preço no SUS chega a R$ 471 mil por paciente por ano; e o lenacapavir, da Gilead, que pode custar anualmente cerca de R$ 220 mil. Para o Brasil fazer esse movimento, Ploeg afirma que antes o país precisa mapear medicamentos sob titularidade americana para facilitar a importação de genéricos.
Para a compra desses medicamentos alternativos, numa eventual mudança nas patentes, seria preciso que eles tirassem novo registro na Anvisa. Entretanto, o médico sanitarista Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), ressalta que a suspensão da exclusividade não pode ser feita de forma abrangente, com medida única atingindo uma série de remédios. “Ela tem que ser feita para um determinado medicamento em função de determinada circunstância”, afirma.
Entre os possíveis impactos negativos da medida, o advogado especializado em propriedade intelectual Gustavo de Freitas Morais, sócio do escritório Dannemann Siemsen, alerta que a medida pode atrapalhar investimentos no Brasil: “O direito da propriedade intelectual é um fator importante para se investir em determinado país. E interferir nisso pegaria mal para a imagem do Brasil e geraria insegurança jurídica. O momento é de colocar a mão na consciência e evitar o que seria um abalo ao investimento e à credibilidade brasileira”, diz Morais.
O advogado Regis Arslanian, sócio do escritório Licks Attorneys e ex-diplomata, lembra que o Brasil foi alvo de sanções dos EUA na década 1980 justamente por patentes farmacêuticas e questões de propriedade intelectual do mercado de informática. Na ocasião, Washington adotou medidas contra o país por meio da seção 301 da Lei de Comércio americana - que é citada agora na carta de Trump ao anunciar as tarifas contra o Brasil. “Ou seja, já tem fundamentação na lei dos EUA se o governo daqui decidir retaliar dessa forma. Essa medida não é a melhor solução, temos que ter diálogo”, diz.
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