A confiança é a viga mestra de um mercado de capitais saudável. Para que investidores — de pequenos poupadores a grandes fundos de pensão — aloquem seus recursos de forma eficiente, é indispensável que acreditem que as regras do jogo são justas e funcionam. Pessoas investem convictas de que irão receber sua fatia do bolo quando ele crescer — ou, no mínimo, que haverá quem garanta a entrega do seu pedaço, ainda que mingado.
Naturalmente, cada novo escândalo — daqueles que ganham manchete de jornal ou sessão exclusiva em sala premium de cinema — vai corroendo essa confiança. Cada episódio repete, sob nova embalagem, a velha narrativa: acreditar na veracidade das informações divulgadas vira sinônimo de ingenuidade patológica, e quem ousa confiar acaba, ironicamente, “com a sacola na mão”. A punição por excesso de ambição se converte em espetáculo.
Em tempos em que más notícias monopolizam o imaginário coletivo, o debate sobre responsabilidade corporativa (“accountability”, para os íntimos) vira palco de polarização: de um lado, os “culpados”; do outro, as “vítimas”; e, em volta, os “alienados” — sempre prontos a alegar ignorância conveniente.
Nesse cenário de arena e gladiadores, emerge a ideia aparentemente natural de que só tornaremos o mercado mais seguro equipando os próprios agentes com mais ferramentas de fiscalização. Ou seja, um “colab” dos axiomas “o capital fiscaliza o capital” e “a grama só cresce aos olhos do dono”.
É aí que o debate sobre private enforcement ganha força —fortalecer instrumentos para que mais agentes do mercado possam buscar justiça pelas próprias mãos (dentro dos meios legais), atuando em paralelo às instituições tradicionais de defesa.
O tema é especialmente quente no Brasil, ainda mais diante da crescente movimentação de grupos de investidores recorrendo à Inglaterra, Holanda, EUA — e beyond — em busca da tutela dos seus direitos. Não vou me aprofundar aqui no debate, delicadíssimo, sobre se um país estrangeiro teria melhores instrumentos (ou legitimidade) para julgar litígios ocorridos no Brasil. O fato é: a discussão é atual, relevante, e precisa ser enfrentada por quem realmente quer ver as regras do jogo cumpridas e os transgressores responsabilizados.
Um debate legislativo recente e relevante no Congresso Nacional materializou essa discussão no Substitutivo ao Projeto de Lei (PL) n° 3.899/2012. Como o texto é um “combo” de pautas, adianto ao leitor que o foco aqui será justamente na absorção das propostas do PL n° 2.925/2023 — este, sim, com reforma cirúrgica na Lei das S.A. e do Mercado de Capitais, mirando o fortalecimento do private enforcement.
Dentro desse contexto, a análise será dividida em três atos: (i) o que, afinal, está proposto no PL n° 2.925/2023; (ii) como esse projeto se conecta e se entrelaça ao novo substitutivo do PL n° 3.899/2012, especialmente no capítulo do private enforcement; e (iii) uma reflexão crítica sobre o que, no fim das contas, há para celebrar — considerando o estado real do nosso mercado de capitais e a tendência nada lírica que se desenha para o futuro.
1. O Projeto de Lei n∘ 2.925/2023
Toda reforma legislativa no mercado de capitais é, em essência, uma recalibragem do risco. O Projeto de Lei n° 2.925/2023, apresentado pelo Ministério da Fazenda em abril de 2023, é talvez a tentativa mais ambiciosa dos últimos anos de redefinir — na marra — quem segura o abacaxi quando o caldo entorna. Nascido de um diagnóstico da OCDE que expôs a fragilidade da proteção dos acionistas no Brasil, o projeto vai além do ajuste técnico: propõe uma mudança de cultura.
O objetivo declarado? Fortalecer a governança corporativa, empurrando o pêndulo da responsabilidade para administradores e controladores, ao mesmo tempo em que “arma” os investidores com novas ferramentas de litígio.
O projeto introduzia mudanças significativas na Lei das S.A. e na Lei do Mercado de Capitais, com a bandeira de “alinhar” o Brasil a práticas internacionais — supostamente — mais robusta:
O projeto chegou ao Congresso como o cavaleiro branco do famoso livro atribuído ao Apóstolo João — “o que vem e vence triunfante” — embalado por um pedido de urgência na tramitação. Ou seja: pulando todos os obstáculos do rito congressual, dispensando o debate nas comissões técnicas e indo direto ao ponto, enquanto todos assistiam, de queixo caído, ao cavalo vencedor marchando rumo ao pódio.
Mas — como todo pacote ambicioso e aparentemente bem-intencionado que resolve mexer em pauta sensível — a proposta não passou ilesa. Entre “tudo muito bom e tudo muito bem”, sobraram perguntas incômodas no ar:
Não se sabe se algum desses pontos contribuiu, mas o PL n° 2.925/2023 sofreu um plot twist digno de roteiro: o pedido de urgência foi retirado e o projeto estrategicamente devolvido ao barril de vinho para maturar. Até então, ninguém sabia se as ideias seriam enterrados ou apenas recuando para melhor avançar.
2. Uma Aliança Inusitada: Economia Circular e Responsabilidade Corporativa:
O PL n° 2.925/2023 foi apensado ao PL n° 3.899/2012, uma proposta que se arrasta há mais de uma década e que, nesse tempo, virou guarda-chuva para dezenas de projetos sobre sustentabilidade. O relator, no melhor estilo “tudo junto e misturado”, optou por um Substitutivo unificador, criando a nova e abrangente “Política Nacional de Economia Circular” (PNEC).
Mas afinal, o que é Economia Circular? Segundo o próprio projeto, trata-se de um “sistema econômico regenerativo que mantém o fluxo circular de recursos e associa a atividade econômica à gestão inteligente de materiais, produtos e energia, por meio da adição, retenção ou recuperação de valor”. A meta declarada é abandonar o velho modelo linear (extrair, produzir, descartar) e migrar para um ciclo virtuoso: menos resíduos, mais vida útil para produtos, estratégias de reparo, remanufatura e reciclagem.
A justificativa oficial para fundir a reforma do private enforcement (PL 2.925) com essa pauta “verde” está no relatório: os instrumentos clássicos de comando-e-controle ambiental não dão conta dos desastres socioambientais de grande escala. A proposta, então, é criar incentivos privados: fortalecer a responsabilidade civil de administradores e dar mais poder aos investidores, apostando que o capital fiscaliza melhor o capital — e que, no bolso, o risco socioambiental será evitado antes que exploda.
A costura legislativa é elegante no papel, mas levanta uma dúvida estratégica: estamos diante de uma evolução genuína do conceito de sustentabilidade, ou de uma manobra para facilitar a aprovação de uma pauta espinhosa? Economia circular é aplaudida por todos; já uma reforma que amplia litígios contra administradores e controladores sempre enfrentou resistência dos setores empresariais — e seus respectivos defensores na arena política.
Ao empacotar a controversa agenda do private enforcement dentro da embalagem verde e popular da sustentabilidade, o projeto recebe um greenwash de modernidade e urgência ambiental. Mas a pergunta que fica é: a agenda sustentável virou apenas o “cavalo de Troia” para uma reforma estrutural da responsabilidade corporativa que, sozinha, teria um caminho muito mais árduo no Congresso?
Tecnicamente, até há racionalidade na junção das agendas — mas, politicamente, trata-se da mais clássica estratégia: uma pauta de consenso abrindo caminho para outra, de dissenso. E, no fim, todo mundo sai dizendo que venceu.
3. PL 2923 Reloaded
A manobra foi politicamente astuta. Ao enxertar a espinhosa reforma do private enforcement no popular — e aparentemente inofensivo — projeto da “Economia Circular” (PL n° 3.899/2012), os autores garantiram sobrevida à pauta, mas, no processo, a transformaram.
A versão reloaded do PL n° 2.925 veio ligeiramente mais contida — para alívio de muitos no mercado. Eis o que mudou:
No fim, as aspirações originais da reforma perderam alguns dentes. O pêndulo, que no texto original pendia agressivamente a favor dos investidores, agora retorna a uma posição um pouco mais equilibrada — pelo menos até o fim deste episódio da saga.
Embora seja louvável o esforço de aprimorar o texto e as diversas audiências técnicas promovidas pelos autores junto às classes, o PL 2923 reloaded fechou algumas arestas, mas inevitavelmente abriu outras. Deixo no ar para o leitor algumas perguntas que me ocorreram ao analisar o novo texto:
4. Conclusão: em busca da perfeição do mercado e dos motivos que temos para comemorar
Ninguém é contra os grandes axiomas: transparência, força vinculante das promessas, o dever de indenizar em caso de falhas. O zeitgeist do PL 2.923 é, sem dúvida, nobre e reflete essa preocupação. Mas, olhando com sensibilidade para o momento atual do mercado brasileiro, cabe perguntar: será mesmo que o nosso grande problema hoje é a falta de segurança jurídica para o investidor?
Mercado de capitais deveria ser palco de atividade econômica, inovação, geração de riqueza — não apenas um amontoado de regras “perfeitas” ou tecnicamente claras. Por mais que a lei seja o meu instrumento de trabalho, abrindo portas para consultorias, disputas ou debates em sala de aula, tenho plena consciência: a atividade mercantil e o empreendedorismo existiam muito antes da regulamentação das corporações.
A lei, por si só, não torna o mercado perfeito. O que faz um mercado pulsar é a circulação de riqueza. Não por acaso, o chamado “livre mercado” se autorregula pelo encontro real entre oferta e demanda.
Sim, a pauta do private enforcement é importante. Mas vivemos um momento singular da história em que, diariamente, mais companhias anunciam OPAs de fechamento do capital. Será mesmo que aprovar uma lei que multiplica a litigiosidade e distribui armas jurídicas de destruição em massa é o chamariz que falta para manter agentes e frequentadores nesse complexo parque de diversões chamado mercado de capitais? Spoiler Alert: não vai ser.
Com ameaças de obsolescência trazidas pela inteligência artificial, conflitos e incertezas vindos das reformas tributárias e da própria estrutura do Estado, Selic nas alturas, tarifaços, concorrência acirrada, rumores de guerra e uma insegurança jurídica que desorienta até nossos maiores juristas diante de questões comezinhas, a tão sonhada terra prometida da “proteção ao investidor” parece mais uma corrida armamentista do que uma iniciativa real de revitalização do mercado.
As moscas são atraídas pelo mel, não pelo vinagre — que, aliás, é o destino de certos vinhos que saem do barril na hora errada. Talvez esse seja o risco do PL 2.923: uma boa ideia que, se tirada prematuramente do barril do amadurecimento, só serviria amargor.
O momento pede regras de desburocratização, incentivos, parcelamentos, fresh start para o empreendedorismo, moratórias e vendas de ativos livres de sucessão — ferramentas para facilitar a circulação, não para punir. Em tempos de fome, todo grito parece ter razão e todas as sangrias se parecem. O que o mercado precisa agora é de fortalecimento dos seus agentes — e que novas armas jurídicas, por ora, permaneçam reservadas no fundo mais gelado da adega.
É possível — e talvez provável — que as novas leis de proteção, em vez de servirem como remédio, acabem funcionando como a gota de veneno que faltava para o enfermo cruzar a fronteira. Qualquer companhia que ainda hesite sobre fechar ou não seu capital dificilmente vai resistir à tentação diante dos rumores da mais nova class action brasileira e das perigosas indenizações por falha informacional que ninguém sabe ao certo como calcular.
Por isso, encerro com o alerta precioso de Renato Russo sobre as mazelas da própria perfeição — e meu pedido de desculpas ao nobre leitor pela extensão desta coluna e eventuais tropeços na “canção” de hoje:
“Vamos celebrar o horror
De tudo isso com festa, velório e caixão
Está tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou esta canção”
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