Judicialização de terapias CAR-T: papel do Judiciário no acesso à saúde

June 23, 2025

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Conjur

A judicialização da saúde vem crescendo no Brasil, tanto no âmbito da saúde pública quanto na suplementar.

Na saúde suplementar, a judicialização possui um papel importante diante das frequentes negativas de cobertura de certos tratamentos pelas operadoras de planos de saúde. Especificamente no campo da oncologia, a judicialização é ainda mais evidente com o surgimento de terapias avançadas, como aquelas com CAR-T (Chimeric Antigen Receptor T-cell therapy).

As negativas de cobertura têm se tornado tão frequentes que aos pacientes não restam alternativas, senão acionar o Judiciário, que vem acertadamente pautando-se no que dispõe a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998 (Lei dos Planos de Saúde), para garantir o acesso ao tratamento prescrito.

Terapia CAR-T: tratamento inovador não experimental

A terapia CAR-T representa uma abordagem inovadora de tratamento oncológico, envolvendo a alteração genética de células T do próprio paciente, as quais desempenham um papel fundamental na defesa e no combate a doenças, para que elas passem a reconhecer e atacar as células tumorais.

As terapias CAR-T são o resultado de mais de 60 anos de estudos e avanços em imunoterapia e biotecnologia. No Brasil, diversas terapias CAR-T, enquadradas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como uma categoria especial de medicamentos novos [1], já passaram por um rigoroso processo de avaliação e aprovação de registro [2] perante a agência até a sua disponibilização no mercado brasileiro.

Assim, o fato de terapias CAR-T já registradas serem resultado de pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias não pode ser confundido com o atributo experimental.

Como se sabe, medicamentos experimentais são aqueles que só podem ser disponibilizados aos pacientes sob condições determinadas, que incluem a participação em pesquisas clínicas, antes da aprovação de seu registro na Anvisa, ou por meio de programas específicos, como o uso compassivo ou acesso expandido. Essas restrições visam garantir o acesso seguro a tratamentos promissores, mas ainda em fase de desenvolvimento — o que não é o caso de terapias CAR-T já registradas.

Obrigação dos planos de saúde

Apesar de diversas terapias avançadas já serem aprovadas pela Anvisa há anos, o que se nota é um movimento das operadoras de negativa de cobertura de tais medicamentos, sob a argumentação de que seriam medicamentos (i) de caráter experimental, (ii) de alto custo e (iii) não previstos no Rol da ANS.

Como mencionado, o primeiro argumento é equivocado em razão do registro das terapias CAR-T na Anvisa. E o segundo argumento não é suficiente nem aceitável para motivar uma negativa de cobertura. [3] Afinal, o teto dos preços de comercialização desses medicamentos no país é definido pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed). Além disso, o pressuposto econômico da operação de planos e seguros de saúde é justamente pulverizar os riscos dentre uma massa de beneficiários para que o acesso a tratamentos de alto custo para um indivíduo seja acessível àqueles que tiverem prescrição médica e cobertura contratual para tanto.

Por fim, o último argumento também não encontra suporte na legislação. Por se enquadrarem como medicamentos e não possuírem caráter experimental, as terapias CAR-T devem ter sua cobertura assegurada pelas operadoras de planos de saúde, o que inclusive decorre de diversos dispositivos legais da Lei dos Planos de Saúde.

Primeiramente, para os planos que incluem a cobertura de internação hospitalar, o artigo 12, II, “d” [4], da referida lei prevê a cobertura obrigatória dos medicamentos administrados durante a internação conforme prescrição do médico assistente.

Essa previsão é reforçada pelo artigo 8º, III, [5] da Resolução Normativa nº 465/2021 (“RN nº 465/2021”) da ANS, ao estabelecer a obrigatoriedade de cobertura de medicamentos com registro na Anvisa, ainda que não listados expressamente no Rol da ANS, quando (i) utilizados em procedimentos com cobertura obrigatória, no caso de planos de segmentação ambulatorial, ou (ii) ministrados durante o período de internação, quando o plano incluir internação hospitalar, como é o caso da administração das terapias avançadas.

Não bastasse isso, é evidente a intenção, na Lei de Planos de Saúde, de que haja ampla cobertura para tratamentos antineoplásicos, ou seja, oncológicos. Nesse sentido, a Lei estabelece a obrigatoriedade de cobertura de tais tratamentos como exigência mínima tanto nos planos da segmentação ambulatorial (artigo 12, I, “c” [6]), quanto nos planos da segmentação hospitalar (artigo 12, II, “g” [7]).

E essas não são as únicas hipóteses legais que suportam a obrigação de cobertura das terapias CAR-T por operadoras de planos de saúde. Com a alteração legislativa promovida pela Lei nº 14.454/2022, foi acrescentado o §13 ao artig 10 da Lei nº 9.656/1998, que expressamente obriga as operadoras de planos de saúde a cobrir procedimentos/tratamentos fora do Rol da ANS, sempre que prescritos por médicos e atendidos os seguintes critérios: (i) houver comprovação de eficácia com base em evidências científicas e plano terapêutico; ou (ii) houver recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) ou de órgão internacional de renome, desde que também aprovadas para seus nacionais.

Nesse contexto, inclusive, a jurisprudência [8] do Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a reconhecer que a natureza do Rol de ANS é de taxatividade mitigada.

Diante dessas previsões legais e dos critérios estabelecidos, em caso de negativas abusivas por parte das operadoras, decisões judiciais que determinam o fornecimento de terapias CAR-T não são arbitrárias ou infundadas. Longe disso, estão em consonância com o ordenamento jurídico.

Atuação judicial pautada na legalidade

A análise das demandas envolvendo o fornecimento de terapia CAR-T evidencia que o Poder Judiciário vem atuando de forma técnica e criteriosa, assegurando a efetividade do direito à saúde nos casos em que estão presentes requisitos objetivos para tanto, o que impede decisões arbitrárias e realça o caráter técnico das intervenções judiciais.

Nas decisões que determinam a obrigação de fornecer o medicamento de terapia avançada ao paciente, o Judiciário considera a existência de registro vigente da terapia na Anvisa, o que afasta qualquer alegação quanto ao seu caráter experimental e assegura a sua regularidade para comercialização no mercado brasileiro.

O Judiciário também tem exigido a apresentação de prescrição médica, acompanhada de laudo clínico, que atestem a pertinência da terapia solicitada no caso concreto, considerando a inexistência de alternativas eficazes, especialmente nos casos de doenças raras e refratárias a tratamentos convencionalmente indicados. Isso demonstra a diligência do Judiciário para que a obrigação de fornecimento se dê nos casos devidamente justificados [9].

Soma-se a isso a importância das Notas Técnicas emitidas pelos Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NatJus), que vêm se posicionando favoravelmente à terapia em diversos casos, com destaque à sua eficácia comprovada em evidências científicas [10].

Outro aspecto examinado pelo Judiciário é a eficácia da terapia CAR-T atestada por outras agências reguladoras como o Food and Drug Administration (FDA) nos Estados Unidos, que aprovou a primeira terapia no país após décadas de estudos com resultados positivos [11].

Por fim, os tribunais também reconhecem que a negativa de cobertura de medicamento registrado na Anvisa pelas operadoras, sem a existência de alternativa terapêutica, consiste em violação ao objeto contratual e ainda coloca o consumidor em extrema desvantagem em ofensa ao Código de Defesa do Consumidor [12].

Todos esses critérios adotados comprovam que a construção das decisões favoráveis ao fornecimento das terapias CAR-T não é aleatória, mas consequência direta de uma análise fundamentada em aspectos legais, técnicos e constitucionais, em especial o direito à vida e à saúde.

Conclusão

Como visto, considerando as previsões e hipóteses da Lei nº 14.454/2022, em especial a evidente intenção do legislador de que haja ampla cobertura de tratamentos antineoplásicos/oncológicos (artigo 12, I, “c” e II, “g”) e o disposto no artigo 12, II, “d”, que já determina o fornecimento de medicamentos durante o período de internação hospitalar, as operadoras devem fornecer obrigatoriamente terapias CAR-T registradas que tenham sido prescritas por médicos aos pacientes, independentemente de sua inclusão específica no Rol da ANS. Ou seja, a obrigação de fornecimento já decorre da leitura da própria Lei dos Planos de Saúde.

Nesse contexto, longe de decisões simplesmente voluntaristas ou meramente dotadas de critérios subjetivos, o Judiciário tem exarado decisões mais técnicas e responsáveis, o que assegura uma assistência mais efetiva à saúde dos cidadãos e maior previsibilidade às operadoras.

[1] Nos termos do inciso XVIII do art. 4º da Diretoria Colegiada nº 505, de 27 de maio de 2021 (“RDC nº 505/2021”).

[2] Terapias CAR-T registradas na ANVISA: Yescarta (registro nº 109290013); Kymriah (registro nº 100681180); Tecartus (registro nº 109290014);

[3] Especialmente porque a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed) – órgão responsável por precificar os medicamentos – adota critérios rigorosos, como a comparação com preços aprovados em outros países e avaliação de impacto orçamentário, propiciando que os preços sejam aprovados de forma compatível ao sistema de saúde brasileiro.

[4] Art. 12. São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas: (…) II – quando incluir internação hospitalar: (…) d) cobertura de exames complementares indispensáveis para o controle da evolução da doença e elucidação diagnóstica, fornecimento de medicamentos, anestésicos, gases medicinais, transfusões e sessões de quimioterapia e radioterapia, conforme prescrição do médico assistente, realizados ou ministrados durante o período de internação hospitalar;

[5] Art. 8º Nos procedimentos e eventos previstos nesta Resolução Normativa e seus Anexos, se houver indicação do profissional assistente, na forma do artigo 6º, §1º, respeitando-se os critérios de credenciamento, referenciamento, reembolso ou qualquer tipo de relação entre a operadora e prestadores de serviços de saúde, fica assegurada a cobertura para: (…) III – taxas, materiais, contrastes, medicamentos, e demais insumos necessários para sua realização, desde que estejam regularizados e/ou registrados e suas indicações constem da bula/manual perante a ANVISA ou disponibilizado pelo fabricante.

[6] Art. 12. São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas: I – quando incluir atendimento ambulatorial: […] c) cobertura de tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral, incluindo medicamentos para o controle de efeitos adversos relacionados ao tratamento e adjuvantes;

[7] II – quando incluir internação hospitalar: […] g) cobertura para tratamentos antineoplásicos ambulatoriais e domiciliares de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia, na qualidade de procedimentos cuja necessidade esteja relacionada à continuidade da assistência prestada em âmbito de internação hospitalar;

[9] TJSP; Apelação Cível 1169606-97.2023.8.26.0100; Relator (a): Schmitt Corrêa; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/09/2024; Data de Registro: 03/09/2024

[10] TJSP; Apelação Cível 1061341-64.2024.8.26.0100; Relator (a): Domingos de Siqueira Frascino; Órgão Julgador: Núcleo de Justiça 4.0 em Segundo Grau – Turma IV (Direito Privado 1); Foro Central Cível – 43ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/03/2025; Data de Registro: 28/03/2025

[11] TJSP; Apelação Cível 1035146-28.2013.8.26.0100; Relator (a): João Batista Vilhena; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 27ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/05/2024; Data de Registro: 26/07/2024

[12] Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (…) IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; (…) § 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: (…) II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;

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