O mercado de capitais não é imune a narrativas — ele é feito delas. Mas, quando a palavra de um influenciador vira o estopim de uma disputa judicial por manipulação, surge a pergunta incômoda: até onde vai a liberdade de opinar quando há dinheiro em jogo?
No caso explosivo entre a Hectare Capital e duas frentes distintas — a casa de análises Suno e agentes vinculados à XP — essa pergunta saiu das redes e invadiu os autos. O que começou como uma crítica a um fundo imobiliário se transformou em mandados de busca e apreensão, ações judiciais e uma investigação da CVM. Tudo porque uma opinião — com ou sem conflito de interesse — teria impactado o preço de mercado de um ativo.
Mas o problema não é novo. Em um ambiente saturado de vozes, ser pago para opinar é inevitável. Se um analista critica um produto concorrente enquanto recomenda outro — ainda que remunerado para isso — devemos julgar a origem da fala ou a substância do argumento?
Pense no dentista contratado para promover um novo flúor. Ao desaconselhar a marca antiga e recomendar a patrocinada, ele está manipulando? Ou está apenas emitindo uma opinião incentivada — mas tecnicamente defensável?
Se um influenciador é pago para criticar e, ainda assim, apresenta dados, fundamentos e uma tese coerente — estamos diante de um crime, de um conflito, ou apenas de um mercado onde, nas palavras de Guimarães Rosa, pãos ou pães sempre foram questão de “opiniães”?
Este artigo começa aqui — no limite tênue entre liberdade de expressão, transparência e o risco de transformar recomendação sobre um papel em arma.
Em fevereiro de 2022, o mercado financeiro brasileiro testemunhou o início de uma disputa emblemática entre a gestora Hectare Capital e a casa de análises Suno. A Hectare acusou a XP e a Suno de promover uma campanha orquestrada para desvalorizar seu fundo imobiliário HCTR11, com o objetivo de favorecer o SNCI11 — fundo gerido pela própria Suno e lançado no mesmo período.
A tensão escalou até culminar, em 14 de fevereiro de 2023, numa operação de busca e apreensão que mobilizou oficiais de justiça em três cidades — São Paulo, Porto Alegre e Goiânia. Computadores e celulares de sócios e funcionários foram apreendidos. O mandado, expedido em segredo de justiça, foi obtido a partir de uma ação de produção antecipada de provas movida pela Hectare.
Segundo a Hectare, a Suno e seus agentes teriam usado suas plataformas, entre os dias 12 e 16 de abril de 2022, para desferir críticas sistemáticas ao HCTR11 em um momento sensível: a 13ª emissão de cotas do fundo estava em andamento.
O impacto foi imediato: as cotas, que variavam entre R$ 103,70 e R$ 105, recuaram para R$ 90,39 — menor valor desde o IPO. A captação, naturalmente, fracassou. A Hectare argumenta que as ações se enquadrariam no conceito de boiler room — um ambiente de pressão mercadológica deliberadamente criado com base em informações sabidamente enganosas, com o objetivo de induzir movimentos artificiais de mercado.
Mensagens atribuídas a um agente reforçaria a acusação, no qual ele teria consultado um advogado sobre “algum ângulo para explorar negativamente” o HCTR11. Para a gestora, a crítica não era apenas técnica — era estratégica e orientada por interesses comerciais diretos: uma campanha de publicidade negativa meticulosamente orquestrada.
A Suno se defendeu, alegando que jamais negociou, negocia ou pretende negociar cotas do HCTR11, e que suas análises seguem controles internos rigorosos e respeito à legislação aplicável.
A complexidade do caso lança luz sobre a estrutura dual da Suno — que opera simultaneamente como casa de análise e gestora de ativos. A legislação admite essa coexistência, mas exige barreiras internas sólidas, as chamadas Chinese Walls, para impedir a contaminação entre análise e interesse comercial.
De fato, a própria Suno já havia, em relatório de fevereiro de 2022, apontado falhas de transparência na gestão do HCTR11, como sobreposição de operações e ausência de relatórios de risco. Na época, preferiu não emitir recomendação formal de compra ou venda — um alerta técnico que, meses depois, se intensificaria no auge da nova emissão.
Além da disputa judicial, a Hectare apresentou uma denúncia à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) contra a Suno e uma notícia-crime à Polícia Federal, que resultaram na abertura de inquérito — ambos em tramitação sob sigilo.
Segundo apuração do jornalista Diego Felix, publicada na Folha de S.Paulo em 5 de fevereiro de 2024, documentos internos da investigação da CVM apontam evidências de que a Suno teria agido para prejudicar a Hectare.
A Suno, em nota à imprensa, afirmou que sempre prestou todos os esclarecimentos solicitados pelas autoridades e reafirmou seu compromisso com a transparência e com o investidor pessoa física. Ainda, a Suno alega que as críticas ao HCTR11 não surgiram no calor da disputa, mas vinham sendo construídas de forma contínua ao longo de meses, com base em riscos reais identificados na estrutura jurídica e na governança dos ativos sob gestão da Hectare.
Um exemplo central citado pela defesa da Suno e um de seus analistas diz respeito ao ativo Circuito de Compras São Paulo SPE Ltda., cuja estrutura teria levantado sérias dúvidas sobre a transparência dos fluxos financeiros, os critérios de precificação e a governança das operações incorporadas ao portfólio do HCTR11.
Segundo a Suno, o histórico de críticas à Hectare remonta a um período anterior a qualquer confronto direto ou lançamento de fundo concorrente. A ausência de resposta da gestora a reiterados pedidos de esclarecimento teria, inclusive, motivado comunicações formais à CVM, apontando riscos de governança e potenciais conflitos de interesse associados à administração do fundo.
Esse ponto é crucial porque desafia diretamente a tese da Hectare de que a Suno teria “inventado” uma narrativa crítica com o único propósito de sabotar sua captação. Ao contrário: o que se delineia nos autos da defesa é uma sequência consistente de manifestações públicas e técnicas, com fundamento pré-existente, sobre temas como a concentração de ativos em SPEs com baixa transparência, a ausência de relatórios de risco e a adoção de métodos questionáveis para a rentabilização do fundo.
Nos agravos apresentados, os advogados de defesa reforçam ainda que o processo movido pela Hectare configuraria uma tentativa de instrumentalizar o Judiciário como mecanismo de silenciamento — uma retaliação travestida de tutela cautelar, dirigida contra vozes que exerciam uma função legítima de crítica técnica no mercado.
Dessa forma, o litígio transcende o embate entre players e se projeta como um debate institucional mais amplo: até que ponto uma crítica técnica pode ser considerada incômoda — e quando o incômodo se transforma, indevidamente, em litígio?
O segundo eixo do conflito jurídico se voltou contra a XP Investimentos e agentes autônomos a ela vinculados, incluindo os escritórios Rio Capital e Criteria Investimentos. A Hectare alegou que esses agentes, a partir de abril de 2022, passaram a disseminar, por canais internos e contatos com investidores, informações infundadas e alarmistas sobre a suposta insolvência do fundo HCTR11.
Segundo informações obtidas, assessores financeiros teriam alertado cotistas para “zerar posição” no fundo “antes que o dinheiro virasse pó”. Em supostos diálogos registrados, os agentes citavam como base para suas recomendações materiais internos, atribuídos à própria XP, embora nunca tenham fornecido cópias ou evidências concretas.
De acordo com a inicial da ação de produção antecipada de provas, juntada como anexo público em agravos posteriores, há o relato de um investidor que teria sido aconselhado por agentes da Rio Capital a sair imediatamente do HCTR11, sob a justificativa de que parte dos ativos do fundo estaria vinculada a um esquema de luvas — “quase uma propina” conforme escrito na petição — e em vias de inadimplência. Quando pressionados, os assessores afirmaram que as informações tinham sido repassadas pela XP, mas se recusaram a apresentar qualquer documentação de suporte, alegando tratar-se de material confidencial.
Além dessas conversas, o documento menciona um informe de 12 páginas, elaborado pela Criteria Investimentos e compartilhado via WhatsApp, que apontava uma série de operações supostamente arriscadas, descrevendo o fluxo de capital do HCTR11 como “comprometido” e sugerindo que o fundo “manipulava seu capital para evitar um default”.
Para a Hectare, esse conjunto de medidas implementadas pelos réus configuraria uma campanha orquestrada para induzir pânico de mercado e direcionar investidores a fundos concorrentes — inclusive o VGHF11 e o MCHF, coordenados pela própria XP, e indicados pelos mesmos agentes como alternativas mais seguras no mesmo período.
A XP, por sua vez, negou qualquer envolvimento institucional, afirmou que não produziu relatórios com esse conteúdo e declarou que jamais sugeriu inadimplência do HCTR11. Também reforçou que não foi formalmente intimada na ação e se desvinculou das iniciativas dos escritórios autônomos.
No dia 5 de junho de 2024, a 1ª Câmara Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu pela extinção da ação de produção antecipada de provas movida pela Hectare Capital contra a Suno. A decisão parece querer extinguir a etapa mais visível do litígio civil que, no ano anterior, havia culminado em mandados de busca e apreensão nos escritórios da Suno em São Paulo, Goiânia e Porto Alegre.
Mas a disputa está longe de terminar. A Hectare declarou que pretende recorrer da decisão e afirmou que outras frentes do conflito permanecem ativas — em especial, o inquérito em sigilo na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e uma notícia-crime protocolada na Polícia Federal. Segundo revelou reportagem da Folha de S.Paulo, a gestora sustenta que a operação judicial era necessária para apurar indícios de condutas que extrapolariam o direito de crítica e configurariam manipulação deliberada de mercado.
Do outro lado, a Suno manteve sua linha narrativa. Em nota, reafirmou a legitimidade de sua atuação como casa de análise independente, reforçou seu compromisso com os investidores individuais e declarou que sempre operou dentro dos limites legais e regulatórios.
O pano de fundo dessa batalha, no entanto, vai além do embate jurídico. O caso trouxe à tona fragilidades estruturais de uma fatia significativa do mercado de fundos imobiliários — especialmente os chamados “fundos de papel” high yield, que operam com Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) de maior risco em troca da promessa de dividendos elevados.
O HCTR11, foco da controvérsia, é símbolo desse modelo. Em setembro de 2023, surpreendeu seus mais de 200 mil cotistas com um corte de 66% no valor dos rendimentos distribuídos — o maior desde o IPO do fundo. O impacto foi imediato. Além da frustração financeira, o episódio reacendeu questionamentos sobre a real sustentabilidade dos proventos gerados por estruturas de maior alavancagem.
Como apontou reportagem do Valor Investe, publicada em 21 de setembro de 2023, o episódio escancarou a fragilidade da tomada de decisão baseada exclusivamente em dividendos passados. Muitos investidores continuam escolhendo produtos pela promessa de retorno mensal, sem considerar a qualidade dos ativos, a robustez das garantias ou a resiliência do fluxo financeiro.
Especialistas ouvidos pela publicação do Valor Investe alertaram que fundos como o HCTR11 são mais expostos a inadimplência, atrasos de pagamento e deterioração de garantias — riscos que permanecem invisíveis até o momento em que se concretizam. A materialização desses riscos mostrou que, em determinados segmentos, o apetite por yield pode engolir a análise de fundamento.
Os conflitos jurídicos em torno da disputa entre Hectare e Suno — e, em paralelo, com a XP — iluminam um ponto de tensão estrutural no mercado de capitais: o limite entre crítica fundamentada e manipulação de preços.
Mais do que um embate reputacional, o caso exige retorno ao núcleo duro da regulação — em especial ao art. 27-C da Lei nº 6.385/76, à Resolução CVM nº 20/2021 e, de forma complementar, à Resolução CVM nº 179/2023, que atualizou os padrões de transparência exigidos de analistas, distribuidores e intermediários quanto à remuneração e aos potenciais conflitos.
A Lei do Mercado de Capitais (Lei nº 6.385/76), que instituiu a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em seu artigo 27-C, exige materialidade concreta para que se configure o crime de manipulação de mercado. Não basta uma crítica ruidosa ou um movimento brusco no preço de um ativo. Para que haja manipulação, é necessário comprovar a existência de intenção deliberada, meio apto e efeito artificial sobre o preço ou volume negociado de um valor mobiliário, com o objetivo de obter vantagem indevida ou causar prejuízo a terceiros.
Manipulação não se presume — ela precisa ser demonstrada com densidade probatória. O simples fato de um analista ser remunerado, ou de haver um conflito de interesses declarado, não basta para configurar manipulação de mercado. Para ser considerada manipuladora, a recomendação precisa ser dolosa, dissimulada e descolada de qualquer base técnica legítima.
A Resolução CVM nº 20/2021 aprofunda esse filtro. O art. 12 exige que o analista atue com probidade, boa-fé e ética profissional; o art. 8º impõe a adoção de código de conduta com compromisso ativo com a veracidade das informações. Ou seja: não é a identidade do analista que define a licitude da crítica — é a substância da análise.
E a Resolução CVM nº 179/2023 fortalece esse arcabouço ao exigir disclosure expresso, estruturado e acessível sobre formas de remuneração e potenciais conflitos de interesse — inclusive em plataformas digitais. O art. 26-A impõe que intermediários informem, de forma clara e ostensiva, qualquer remuneração associada à recomendação de valores mobiliários. Já o art. 26-E exige que o cliente seja alertado, no exato momento da ordem de investimento, sobre o impacto econômico daquele vínculo.
Esse novo arcabouço reforça uma lógica essencial: o mercado não exige neutralidade — exige transparência. E, com ela, impõe-se juízo técnico sobre o conteúdo.
Casas de análise não operam num vácuo. O mercado é um ecossistema de incentivos — e não há problema nisso. Quando um analista critica um produto concorrente enquanto recomenda outro, é necessário examinar dois eixos: (i) se houve disclosure claro e tempestivo; (ii) se a crítica possui fundamento técnico verificável.
O primeiro é uma questão de forma; o segundo, de substância.
Em outras palavras: a análise deve ser julgada pelo conteúdo — não pela remuneração de quem a profere. Assim como se distingue conflito formal de material, também é necessário separar opinião vendida de opinião inválida. A primeira pode ser antiética se mal revelada. A segunda, só será ilícita se dolosa, manipuladora, desprovida de base.
O mercado está repleto de “hired guns” — analistas pagos para opinar, influenciadores patrocinados, consultores bancados por fundos. Isso, por si, não contamina a mensagem. O que importa é: o conteúdo se sustenta? Tem lógica, dados, método? Ou é apenas espuma performática travestida de análise?
A informação patrocinada, quando revelada e sólida, pode contribuir legitimamente para a descoberta de preço. Pode alertar para riscos ignorados. Pode até corrigir disfunções assimétricas. O que o mercado — e a regulação — não tolera é o uso dissimulado da credencial técnica como arma de guerra competitiva.
Para além dessas discussões sobre limite de opinião, o caso lança luz a uma questão secundária: a fragilidade estrutural do investidor de varejo frente a produtos complexos. A queda de 66% nos proventos do HCTR11 em 2023 mostrou que o problema vai além do jurídico — há um descompasso brutal entre o apetite por dividendos e a real capacidade de avaliar risco de crédito.
Em um ambiente onde os proventos pingam com facilidade, e os relatórios nem sempre são lidos até o fim, a lição é clara: nem tudo que reluz é dividend yield.
A liberdade de análise e expressão é ativo vital para a eficiência informacional do mercado. Silenciar críticas tecnicamente estruturadas com base apenas em interesses concorrenciais cria um precedente perigoso. A descoberta de preços depende de embate entre visões conflitantes — mesmo quando incômodas.
Por isso, a crítica — ainda que ácida, ainda que patrocinada — deve ser testada em sua robustez, não em sua origem. Se for rasa, que seja exposta. Se for sólida, que seja absorvida. Manipulação exige mais que desconforto: exige dolo, artifício, distorção. E isso — ao menos por enquanto — ainda precisa ser provado.
Nesse cenário, a estratégia adotada pela Hectare se torna objeto legítimo de escrutínio. Não se teve acesso às provas que embasaram os pedidos cautelares — e abusos, se houver, devem ser investigados. Mas a resposta via litígio, sem engajamento técnico público, não passou incólume. Ao evitar o debate transparente, a gestora se deixou à mercê do mesmo tipo de crítica que tentou judicializar.
A Hectare tem, sim, o direito de acionar o Judiciário para fazer sua defesa institucional. Mas esse direito traz consigo ônus reputacional: quando a resposta à crítica é silêncio técnico e judicialização seletiva, o mercado percebe. E, como sempre, precifica.
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