Muito se tem debatido sobre a possibilidade de o governo brasileiro impor sanções na área da propriedade intelectual (PI) como forma de retaliação às medidas unilaterais de caráter tarifário aplicadas ao Brasil pela administração Trump.
Não é a primeira vez que no Brasil se discute a possibilidade de utilizar a PI como meio de retaliar comercialmente outros membros da OMC. Anos atrás, falou-se sobre a “quebra” de patentes farmacêuticas como meio não só de responder a eventuais violações das regras da OMC por parceiros comerciais do país, mas também de permitir o acesso barato a medicamentos geralmente muito caros.
Com efeito, parece que se criou uma falsa expectativa de que os ataques à PI — e, sobretudo, às patentes farmacêuticas — não só reporia o equilíbrio na balança dos interesses comerciais do País como também permitiria o acesso das populações pobres a produtos caros, geralmente fora de seu alcance, a menos que custeados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) — ou melhor, por todos nós, através dos impostos.
Em primeiro lugar, observa-se que ameaçar sanções na área da PI em retaliação contra tarifas impostas unilateralmente contra o Brasil pode até fazer sentido. As normas que hoje protegem a PI no Brasil resultam dos compromissos assumidos pelo País perante seus parceiros na OMC durante a Rodada Uruguai, e representam, portanto, concessões comerciais.
A prova de que as normas de proteção da PI constituem concessões comerciais está em que, ao mesmo tempo em que as Partes Contratantes do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT) discutiam na Rodada Uruguai as medidas que levariam ao aumento da proteção da PI, esses mesmos países, paralelamente, negociavam na Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) um projeto de tratado que complementava a Convenção de Paris em matéria de patentes.
Mas, enquanto as negociações na OMPI foram suspensas em 1991, as negociações na Rodada Uruguai continuaram e resultaram no acordo que estabeleceu a OMC, incluindo o Acordo TRIPS. Vale dizer, os países em desenvolvimento recusaram-se a aceitar no âmbito de negociações na OMPI — onde não há como fazer barganha — o que aceitaram depois no âmbito do GATT.
Uma vez dito isto, há que enfatizar que diminuir a proteção da PI, nomeadamente de patentes farmacêuticas, de forma unilateral, como meio de retaliação comercial, não é lícito à luz nem dos acordos internacionais a que o Brasil aderiu, nem da própria lei brasileira. A essência da estrutura da OMC é contrária à ideia de reciprocidade.
Além disso, a Lei de Reciprocidade Econômica dispõe que a aplicação de sanções a estrangeiros no campo da PI deve obedecer ao disposto na Lei 12.270, de 24 de junho de 2010. Esta lei é inequívoca no sentido de que as “medidas de suspensão de concessões ou outras obrigações do país relativas aos direitos de propriedade intelectual e outros, em casos de descumprimento de obrigações” da OMC só podem ser tomadas quando o Brasil for autorizado a adotá-las pelo Órgão de Solução de Controvérsias da OMC ou quando um relatório de um grupo especial da OMC (mais conhecido como “painel”), decidindo a favor do Brasil, for objeto de recurso e este não puder ser decidido (em face da inércia atual do Órgão de Apelações da OMC).
Em terceiro lugar, as medidas de retaliação envolvendo patentes estrangeiras, se alguma vez forem tomadas, não só não terão qualquer efeito útil como serão mesmo contraproducentes.
Entre os seis tipos de sanções identificadas pelo art. 3º da Lei 12.270, de 2010, que poderiam afetar as patentes concedidas a norte-americanos, só aquela relativa à proibição de conceder patentes (inciso VI) é que teria um efeito mais do que pontual.
Para se ter uma ideia, só em 2024, o Brasil exportou cerca de US$ 40 bilhões para os EUA. Este será o valor aproximado do impacto das medidas unilaterais dos EUA, se mantidas. Ora, o valor anual das remessas pelas empresas norte-americanas dos royalties recebidos no mercado brasileiro à luz dessas patentes está muito longe desse montante.
No que respeita à possibilidade da “quebra” das patentes farmacêuticas de origem norte-americana, isto é, à concessão de licenças compulsórias em favor de empresas ou de entidades públicas brasileiras, há que salientar o seguinte:
São estes dois fatores, aliás, que explicam porque as patentes são “quebradas” tão raramente no mundo.
Sobraria, portanto, como única medida com alguma eficácia proporcional às perdas sofridas pelos setores exportadores brasileiros, o recurso à exclusão da patenteabilidade de invenções de cidadãos americanos ou de residentes nos EUA. Mas o preço a pagar seria excessivamente alto: as empresas norte-americanas simplesmente deixariam de colocar esses produtos diretamente no mercado brasileiro.
A isto acresce que o governo brasileiro tem vindo a promover a produção de medicamentos essenciais para o SUS em território nacional, através de parcerias entre os setores privado e público – as chamadas Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP).
O programa das PDPs tem conhecido sucesso, e tem mesmo atraído alguns licenciantes estrangeiros, titulares de patentes, interessados em transferir sua tecnologia para parceiros nacionais. Mas a participação dos titulares da tecnologia é inteiramente voluntária e tem fins lucrativos — ainda que, naturalmente, assegure o acesso a medicamentos a preços consideravelmente mais baixos do que aqueles produzidos fora das PDPs.
Portanto, excluir a patenteabilidade das invenções farmacêuticas de empresas americanas seria o mesmo que encerrar de vez o programa das PDPs para essas empresas. O grande perdedor seria o sistema nacional de saúde pública, ou seja, uma vez mais, o povo brasileiro.
Assim, a “quebra” de patentes farmacêuticas norte-americanas como retaliação às tarifas unilaterais impostas pelos EUA, além de ilícita, não passa de uma miragem. Podem alguns querer ir atrás dessa miragem, mas depois de caminharem pelo deserto irão apenas encontrar mais dunas e mais areia, e nenhum oásis.
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