Não é novidade que a judicialização da saúde no Brasil, tanto pública quanto suplementar, é crescente. Também é sabido que, no caso da saúde suplementar, a judicialização possui um papel importante diante das frequentes negativas de cobertura pelas operadoras de planos de saúde. Ocorre que, especificamente no campo da oncologia, a judicialização tem se mostrado ainda mais evidente e essencial com o surgimento de terapias avançadas, como aquelas com CAR-T (Chimeric Antigen Receptor T-cell therapy).
As operadoras seguem negando cobertura às terapias CAR-T em muitos casos, em que pese a obrigatoriedade de seu fornecimento imposta pela Lei 9.656, de 3 de junho de 1998 (Lei dos Planos de Saúde), já que destinadas a tratamento oncológico (antineoplásico). Desse modo, o Judiciário vem se mostrando a única saída para garantir a pacientes o acesso ao tratamento prescrito, com a devida observância da lei.
A terapia CAR-T é um de tratamento oncológico inovador, que envolve a alteração genética de células T (que desempenham um papel fundamental na defesa e no combate a doenças) do próprio paciente para que elas passem a reconhecer e atacar as células tumorais.
Resultado de mais de 60 anos de estudos e avanços em imunoterapia e biotecnologia, no Brasil, diversas terapias avançadas com CAR-T – que são enquadradas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como uma categoria especial de medicamentos novos[1]– já enfrentaram um rigoroso processo de avaliação e aprovação de registro[2] perante a agência até a sua disponibilização no mercado brasileiro.
Sendo assim, é importante observar que o fato de as terapias CAR-T já registradas na Anvisa serem resultado de pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias não pode ser confundido com o atributo técnico da experimentalidade.
Medicamentos experimentais são tratamentos promissores, mas ainda em fase de desenvolvimento, de modo que só podem ser disponibilizados aos pacientes sob condições determinadas que incluem a participação em pesquisas clínicas, antes da aprovação de seu registro na Anvisa, ou por meio de programas específicos, como o uso compassivo ou acesso expandido.
Apesar de diversas terapias avançadas, como as com CAR-T, já serem aprovadas pela Anvisa há anos, em muitas ocasiões, as operadoras negam a cobertura de tais medicamentos, principalmente sob as seguintes justificativas: (i) suposto caráter experimental do medicamento, (ii) alto custo e (iii) ausência de previsão no chamado rol da ANS – lista que contém a cobertura mínima obrigatória de tratamentos/procedimentos por planos de saúde.
As terapias CAR-T possuem registro na Anvisa, o que afasta a alegação de se tratar de algo experimental. Quanto ao custo do tratamento, isto não pode ser motivo para negativa de cobertura, além do fato de que sua precificação é objeto de autorização da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), mediante critérios rigorosos[3].
Trata-se, ainda, de medicamentos cujo desenvolvimento demanda longo tempo e elevados investimentos e que têm alto custo de produção e fornecimento – desde a sua preparação e até o seu transporte, armazenamento e infusão no paciente.
Além disso, importa esclarecer que, muitas vezes, tais terapias se destinam ao tratamento de doenças com menor grau de incidência na população e, nesse contexto, o volume mais reduzido de vendas impacta o tempo necessário para recuperar investimentos. E, por fim, não é demais lembrar que o pressuposto econômico da operação de planos e seguros de saúde é justamente viabilizar o acesso a tratamentos, inclusive os de alto custo, por meio da pulverização dos riscos dentre uma massa de beneficiários.
Finalmente, com relação ao último argumento, as operadoras vêm alegando suposta necessidade de as terapias avançadas passarem por rito próprio para incorporação no rol da ANS, para somente então poderem ser fornecidas aos pacientes beneficiários.
Essa argumentação veio a ser, posteriormente, registrada em uma controversa – e equivocada – Nota Técnica da ANS (Nota Técnica 03/2023/GCITS/GGRAS/DIRAD-DIPRO/DIPRO), na qual a agência sustenta que os produtos de terapias avançadas não seriam enquadrados no conceito de “medicamento” do art. 12, II, “d”, da Lei dos Planos de Saúde e do art. 8º, III, da Resolução Normativa 465/2021 da ANS, e, por isso, dependeriam de rito próprio de avaliação para ingresso no rol da ANS.
No entanto, a referida nota foi amplamente criticada por violar as normativas da Anvisa, que classificam esses produtos como medicamentos especiais, já registrados e autorizados no Brasil, como exposto acima. Inclusive, hoje, a Nota Técnica encontra-se suspensa em razão de decisão judicial[4].
O art. 12, II, “d”[5], da referida lei prevê a cobertura obrigatória dos medicamentos administrados durante a internação conforme prescrição do médico assistente para os beneficiários dos planos que incluem cobertura de internação hospitalar.
Essa previsão legal é reforçada pelo art. 8º, III,[6] da Resolução Normativa 465/2021 da ANS, que estabelece a obrigatoriedade de cobertura de medicamentos com registro na Anvisa, ainda que não listados expressamente no rol da ANS, quando (i) utilizados em procedimentos com cobertura obrigatória, no caso de planos de segmentação ambulatorial, ou (ii) ministrados durante o período de internação, quando o plano incluir internação hospitalar, como é o caso da administração das terapias avançadas.
Ademais, é evidente a intenção de que haja ampla cobertura para tratamentos antineoplásicos (oncológicos) na Lei de Planos de Saúde, visto que esta estabelece a obrigatoriedade de cobertura de tais tratamentos como exigência mínima tanto nos planos da segmentação ambulatorial (art. 12, I, “c”[7]), quanto nos planos da segmentação hospitalar (art. 12, II, “g”[8]). Essas previsões também reforçam a obrigatoriedade de fornecimento de terapias CAR-T destinadas a tratamentos oncológicos pelas operadoras de planos de saúde.
E essas sequer são as únicas hipóteses legais favoráveis à cobertura obrigatória das terapias CAR-T por operadoras de planos de saúde. A Lei 14.454/2022 acrescentou o §13º ao art. 10 da Lei 9.656/1998, que expressamente obriga planos de saúde a cobrir procedimentos/tratamentos prescritos fora do rol da ANS, desde que atendidos os seguintes critérios: (i) houver comprovação de eficácia com base em evidências científicas e plano terapêutico; ou (ii) houver recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) ou de órgão internacional de renome, desde que também aprovadas para seus nacionais.
Nesse contexto, é evidente que a interpretação sobre suposta sujeição das terapias avançadas a um rito especial para inclusão no rol da ANS consiste em redução ilegal de uma garantia de acesso estabelecida em lei, em detrimento dos beneficiários que fazem jus ao tratamento – o que é agravado no caso das terapias avançadas de caráter antineoplásico, que contam com dupla previsão legal para assegurar a cobertura.
Na análise das demandas sobre CAR-T, o Poder Judiciário vem atuando de forma técnica e criteriosa na aplicação dos dispositivos legais aqui referidos, assegurando a efetividade do direito à saúde nos casos em que estão presentes requisitos objetivos para tanto. Assim, em vez de qualquer indício de arbitrariedade, o que se observa é um realce do caráter técnico das intervenções judiciais.
Nas decisões que determinam o fornecimento de terapia avançada, o Judiciário considera a existência de registro vigente na Anvisa, o que afasta qualquer alegação quanto ao seu caráter experimental e assegura a regularidade da terapia para comercialização no mercado brasileiro.
Também se exige a prescrição médica, acompanhada de laudo clínico, que atestem a pertinência da terapia solicitada no caso concreto, considerando a inexistência de alternativas eficazes, sobretudo para doenças raras e refratárias a tratamentos convencionalmente indicados. O Judiciário tem, portanto, atuado com diligência e critério para que a obrigação de fornecimento se dê apenas nos casos instruídos com a devida justificação[9].
Nesse contexto, também ganham destaque as Notas Técnicas emitidas pelos Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NatJus), que tem se posicionado em favor da terapia em diversos casos, destacando evidências científicas que comprovam sua eficácia[10]. Inclusive, neste tocante, outro aspecto examinado pelos juízes é a eficácia atestada por outras agências reguladoras como o FDA, que aprovou sua primeira terapia CAR-T após décadas de estudos com resultados positivos[11].
Por fim, os Tribunais também reconhecem que a negativa de cobertura de medicamento registrado na Anvisa, sobretudo quando inexiste alternativa terapêutica, consiste em violação contratual e consumerista por parte das operadoras[12].
É evidente, portanto, que as decisões judiciais favoráveis ao fornecimento das terapias CAR-T não decorrem de uma construção jurídica aleatória, mas de uma análise criteriosa e fundamentada em aspectos legais, técnicos e constitucionais, em especial o direito à saúde e à vida.
As negativas de cobertura sobre essas terapias têm sido tão frequentes que aos pacientes não restam alternativas, senão acionar o Judiciário, que vem acertadamente tutelando o direito pleiteado pelos pacientes, fundamentando suas decisões, principalmente, na obrigatoriedade de cobertura de tais medicamentos, mesmo que não inclusos no rol da ANS por procedimento próprio, quando a doença que acomete o paciente está coberta pela Lei dos Planos de Saúde, bem como no fato de que tais medicamentos são aprovados pela Anvisa, com eficácia e segurança comprovadas.
Em suma, considerando a evidente a finalidade da Lei de que haja ampla cobertura de tratamentos antineoplásicos/oncológicos (art. 12, I, “c” e II, “g” da Lei de Planos de Saúde) e o fornecimento de medicamentos durante o período de internação hospitalar (art. 12, II, “d” da mesma lei), as operadoras devem fornecer obrigatoriamente terapias CAR-T registradas que tenham sido prescritas por médicos aos pacientes, independentemente de sua inclusão específica no rol da ANS.
Justamente em atenção a esses dispositivos, o Judiciário tem exarado decisões mais técnicas e responsáveis, o que assegura uma assistência mais efetiva à saúde dos cidadãos, além de maior previsibilidade às operadoras.
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